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"Cartas de um Diabo a seu Aprendiz", C. S. Lewis


SARCASMO DIABÓLICO

 

Cristian Luis Hruschka

 

LEWIS, C.S. Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasiil, 2017, 208 páginas (Tradução: Gabriele Greggersen).

 

“Capture o flautista mágico e todos os ratos o seguirão” (pág. 189).

 

Acabo de ler as dicas e orientações de um diabo a seu jovem aprendiz. Clive Stamples Lewis (1898-1963), num livro repleto de ironia dramática, se assim posso definir, apresenta a correspondência entre um diabo, chamado Maldanado, e seu aprendiz, Vermelindo.

Escrito em formato de cartas, através delas o diabo se corresponde carinhosamente com seu pupilo a fim de orientá-lo e instruí-lo a como lidar com seu paciente, ou seja, o humano ao qual foi designado para atormentar e livrar das garras do Inimigo. O Inimigo, assim mesmo, com “I” maiúsculo, é Deus, e para Maldanado, Ele é “inferior ao Nosso Pai das Profundezas” (pág. 18).

C.S. Lewis foi um dos mais brilhantes escritores de língua inglesa de sua época, sendo até hoje cultuado pela qualidade dos livros religiosos que escreveu. Sua obra mais importante, porém, é o conhecido bestseller “As Crônicas de Nárnia” (1950-1956).

Da mesma forma que ocorre em Nárnia, no livro Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, o autor apresenta incrível criatividade e imaginação. Colocando-se no lugar de um diabo experiente, censura, parabeniza e critica seu aprendiz em diversas oportunidades, sempre receoso de que o paciente seja perdido para as forças do Inimigo. A meta do aprendiz é o sofrimento humano e para tanto lhe são fornecidas as mais diversas ferramentas, não faltando ensinamentos sobre a briga de posses e o incentivo à infidelidade. Para Maldanado, “todos os extremos, exceto a devoção extrema ao Inimigo, devem ser encorajados” (pág. 47).

Quanto às relações matrimoniais, cuja ruptura é constantemente sugerida, assim escreve o diabo:

“Sim, o namoro é a época certa para plantar aquelas sementes que, dez anos mais tarde, irão se transformar em ódio doméstico. Os humanos podem ser induzidos a confundir o encantamento que vem do desejo insatisfeito com os resultados da caridade. Tire vantagem da ambiguidade da palavra ‘amor’: deixe-os na ilusão de que resolveram os problemas pelo amor, quando, na verdade, eles só desistiram deles ou os postergaram sob influência do encantamento. Enquanto esse estado de coisas durar, você terá a chance de fomentar os problemas em segredo e torna-los crônicos” (pág. 140).

Durante todo o livro, sabendo que se trata de uma ficção muito bem elaborada, estamos constantemente envolvidos por trechos de ironia e sarcasmo. Enquanto a ironia é sutil, o sarcasmo é provocativo, ácido, mordaz e malicioso.

No total são 31 cartas, que antes de serem reunidas em livro foram publicadas no ano de 1942 no jornal The Guardian. Estava em pleno curso a Segunda Guerra Mundial, sendo importante situar o livro no tempo para entender expressões diabólicas como:

“É claro que uma guerra é diversão garantida. O medo e o sofrimento imediatos dos humanos são um refresco legítimo e prazeroso para os nossos muitos trabalhadores que pegam no pesado” (pág. 37).

O mestre Maldanado, porém, não gostava de receber notícias de seu aluno sobre a guerra. Em determinada missiva escreve:

“Por favor, não encha as suas cartas com bobagens sobre a Guerra europeia, cujas implicações finais serão, no final das contas, importantes, mas isso é matéria para o Alto Comando” (pág. 133).

Quando se refere ao “Alto Comando”, está fazendo referência ao já mencionado “Pai das Profundezas”, aliás, a dimensão diabólica, para C.S. Lewis, é bastante organizada e o desempenho do seu aprendiz junto ao paciente é monitorado por relatórios, existindo um “Departamento de Pesquisas”, a “Polícia Infernal” e até um “Departamento de Inteligência”.

Tamanha é a organização que no epílogo do livro, quando Maldanado propõe um brinde, este discursa na “Academia de Treinamento de Tentadores” para uma turma de jovens demônios, saudando, além do Diretor Remeleca, todos os espinhosos, desgraçados, sombrios e gentis-demônios presentes, para frisar que os pequenos pecadores estão perdendo força, diminuindo em quantidade, razão pela qual os novos demônios (recém-formados!) devem focar esforços em grandes pecadores, notadamente ditadores, pois, estes trazem consigo uma infinidade de seguidores, garantindo perenidade ao plano de rejeição da fé pela humanidade.

Enfim, pelo que podem perceber, é um livro muito interessante que gera diversas reflexões a respeito da natureza humana. A escrita de C.S. Lewis, apesar de prolixa em alguns momentos, flui com naturalidade e o leitor deve estar atento para não deixar o texto cair na monotonia.

Cartas... é dedicado ao também escritor J.R.R. Tolkien, ninguém mais ninguém menos que o autor de “O Senhor dos Anéis”, livro impressionante e que merece ser lido por todos. A riqueza de detalhes é incrível, colocando o leitor no teatro dos acontecimentos.

Tolkien e Lewis foram grandes amigos e, por certo, essa proximidade contribuiu muito para instigar a imaginação e criatividade de ambos. Aliás, costumamos ver na literatura que o meio em que o escritor está inserido favorece muito a escrita. Os exemplos são dos mais diversos. Hemingway foi amigo de F. Scott Fritzgerald, Borges de Casares. Fernando Sabino era amigo de Hélio Pelegrino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende, correspondendo-se também com Mário de Andrade e Clarice Lispector. Pablo Neruda era padrinho de Paloma, filha do grande escritor baiano Jorge Amado. Isso sem falar do conhecido “Sabadoyle”, que reunia na casa do bibliófilo Plínio Doyle, no Rio de Janeiro (RJ), escritores do quilate de Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Homero Senna, Rachel de Queiroz, Mario Quintana, entre tantos outros intelectuais que compareciam aos encontros.

Por fim, importante destacar a bela edição preparada pela Editora Thomas Nelson Brasil, com capa dura e realces. Outros livros de C.S. Lewis também estão sendo reeditados pela Thomas Nelson, todos com excelente qualidade gráfica.


CRISTIAN LUIS HRUSCHKA, professor e advogado. Autor do livro "Na Linha da Loucura", Ed. Minarete/Legere (www.facebook.com.br/nalinhadaloucura). E-mail: clhadv@hotmail.com.

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