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"O Testamento de Maria", Colm Tóibín

EVANGELHO APÓCRIFO

Cristian Luis Hruschka

 

TÓIBÍN, Colm. O Testamento de Maria, São Paulo: Companhia das Letras, 2013, 87 páginas (Tradução: Jorio Dauster).

 

“Disse-lhe, então, o anjo: Maria, não temas, porque achaste graça diante de Deus.

E eis que em teu ventre conceberás e darás à luz um filho, e pôr-lhe-ás o nome de Jesus.

Este será grande, e será chamado filho do Altíssimo; e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai;

E reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim.”

(Lucas 1:30-33)


O livro escrito por Colm Tóibín (Irlanda, 1955) choca os católicos mais fervorosos, sendo uma afronta às tradições bíblicas e à santidade de Maria, mãe de Jesus.

Trata-se do relato da Virgem quanto aos últimos anos de Jesus Cristo e sua peregrinação para levar a palavra de Deus e salvação às pessoas. Contudo, a narrativa apresenta uma Maria bastante humana e inconformada com o caminho que seu filho tomou, questionando a forma que Ele se vestia e até mesmo duvidando da sua palavra.

Em diversos momentos critica a forma de agir e de se vestir do filho, beirando o deboche o fato de que as pessoas o seguiam. Maria, portanto, se apresenta descrente e por vezes indiferente com o que está acontecendo, questionando-se se era aquele realmente o filho que havia criado.

O livro é narrado em primeira pessoa e Maria assim relata após um encontro com o filho nas bodas de Caná:

“E então o tempo gerou o homem que se sentou ao meu lado nas bodas de Caná, o homem que não atentou para meus conselhos, que não ouviu ninguém, um homem cheio de poder, um poder que parecia não se lembrar do passado, quando necessitava do meu peito para o leite, da minha mão para se manter de pé enquanto aprendia a andar, da minha voz para niná-lo” (pág.48)

Na conversa que teve com seu filho pouco antes do relato acima, Jesus lhe pergunta o que possuem em comum. Maria responde que é sua mãe e antes que pudesse continuar, Jesus, ignorando-a, já estava entretido com outras pessoas, usando palavras enigmáticas e extravagantes, “termos orgulhosos e estranhos para se descrever e à sua missão no mundo”, chegando, inclusive, a ouvir Jesus falar aos presentes, que ouviam de cabeça baixa, ser ele o “Filho de Deus” (pág. 43).

Maria também parece não se importar com os milagres realizados pelo seu filho. Quando informada que Jesus caminhou sobre as águas e determinou que o mar se acalmasse disse:

“(...) ter havido outras histórias, e talvez eu tenha ouvido apenas uma parte desta, quem sabe outra coisa aconteceu, ou talvez não havia vento, ou ele acalmou o vento Não sei. Não me preocupei com isso.” (Pág. 49)

Enquanto muitos passavam a acreditar em Jesus e admirá-lo pelas palavras, pelo amor e pela sabedoria que demonstrava, Maria, sua mãe, parecia questionar esses fatos e não apresentava orgulho em tê-lo gerado e criado.

Até mesmo quando informada de que seu filho seria crucificado, parece não demonstrar muita preocupação. Ao contrário disso, e muitas vezes sem entender bem ao certo, parece irritada quando as outras pessoas a levam de um lugar para outro, sempre avisando que se ela fosse pega poderia ser punida por ser mãe do Messias, ainda que duvidasse que seu filho mantinha essa condição.

Segundo o relato de Maria, ela não acredita que seu filho tenha morrido para redimir os pecados do mundo, para libertar a terra das trevas e do pecado, para salvar a humanidade na condição de Filho de Deus.

Ao final, depois da morte de seu filho, Maria relata que já não vai mais à sinagoga para não ser notada, que anda sem fazer ruídos e fala aos sussurros “com a grande deusa Ártemis”, a que atribui ser “generosa com seus braços estendidos e os muitos seios prontos a alimentar quem a procura” Maria, portanto, adoradora de uma deusa pagã e descrente da sua condição de Mãe do Salvador, sorri e se dirige “às sombras dos deuses desse lugar, que pairam mais acima para me vigiar e me ouvir” (pág. 86/87).

O livro de Tóibín realmente é uma afronta aos ensinamentos cristãos, apresentando Maria com incrível descrença e ingenuidade, indiferente de ser mãe do maior homem que já pisou na terra.

É um livro desconfortável para aqueles que creem em Jesus Cristo e na palavra de Deus, que acreditam na Santíssima Trindade e na pureza da Virgem Maria.

Por outro lado, essa é a beleza da literatura, transportar para o papel ideias, conceitos e versões criativas sobre fatos e pessoas. O livro de Tóibín é bem escrito e sutil, sem ofender ou agredir diretamente os cristãos. O escritor irlandês escreve com educação e de maneira respeitosa, apesar do assunto ser espinhoso.

Sendo chamado o livro de “O Testamento de Maria”, certamente se trataria de um testamento apócrifo e mentiroso. Pior seria se fosse “O Testemunho de Maria”, tido como um depoimento da mãe de Jesus.

Estamos salvos!

CRISTIAN LUIS HRUSCHKA, professor e advogado. Autor do livro "Na Linha da Loucura", Ed. Minarete/Legere (www.facebook.com.br/nalinhadaloucura). E-mail: clhadv@hotmail.com.

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