CAMAÇARI E FORDLÂNDIA: REFLEXOS DE UM ABANDONO
Cristian Luis Hruschka
GRANDIN, Greg. “Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva”, Ed. Rocco, 2010.
Em janeiro de 2022 fez um ano que a Ford Motors Company fechou suas portas em Camaçari, cidade industrial próxima a Salvador, capital da Bahia. Criada por Henry Ford (1863/1947) em 1903, a empresa automobilística empregava mais de quatro mil e quinhentos pessoas.
Segundo reportagem da Folha, assinada pelos jornalistas Leonardo Vieceli e João Pedro Pitombo [1], o fechamento da empresa causou um prejuízo milionário ao Estado da Bahia e ao município, afetando o comércio local e o setor de serviços em cerca de R$ 20 milhões por mês, valor este que advinha dos empregos diretos e indiretos da multinacional norte americana. Escolas e faculdades perderam alunos e tiveram que refinanciar dívidas tributárias. Empresas fecharam. Diversos trabalhadores deixaram a cidade para seguir com a vida e alguns tentam empreender com o dinheiro da rescisão contratual, porém, encontram dificuldades. Outros viraram motoristas de aplicativo. É certo, contudo, conforme diz a matéria jornalística, que “a maioria tem futuro incerto”.
Independente dos motivos econômicos e financeiros que levaram a Ford a abandonar o Brasil, ainda que veja no país um dos maiores mercados para venda de automóveis, é fato que o rastro de destruição deixado levará anos para ser superado, visto ter impactado no dia a dia de inúmeras famílias que dependiam dos empregos na empresa automobilística. O governo baiano tenta trazer outra companhia do ramo para a cidade, aproveitando o espaço deixado pela Ford, porém, isso depende muito de interesses políticos e da economia brasileira que, infelizmente, se apresenta sempre instável.
Este cenário me fez lembrar do livro “Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva”, de autoria do escritor Greg Grandin. Lançado em 2010 pela Editora Rocco, o livro retrata a tentativa do criador da empresa em fundar uma cidade em plena floresta amazônica para produção da borracha utilizada na fabricação dos veículos da Ford.
Como sabemos, a empresa é responsável por cunhar a expressão Fordismo (1913) que, grosso modo, consiste num sistema de produção que instituiu a chamada linha de montagem, onde cada empregado participa de apenas uma operação para a construção do automóvel, ou seja, o veículo vinha pela esteira rolante e o trabalhador executava apenas uma etapa da produção, evitando ociosidade e não necessitando de mão de obra qualificada. Isso reduziu enormemente os custos dos veículos, sendo a Ford um exemplo de sucesso empresarial. Muito questionado posteriormente, o Fordismo encontrou um contraponto no Toyotismo, sistema de produção desenvolvido entre 1948 e 1970 pelos engenheiros da Toyota, empresa automobilística japonesa que transformou as construtoras de veículos em montadoras, ou seja, empresas terceirizadas produziam as peças para construção do veículo que era, literalmente, “montado” pela empresa nipônica.
Henry Ford, porém, queria ter o controle de todas as etapas produtivas, e uma das mais importantes era a produção dos pneus que seriam utilizados nos veículos Ford modelo T, sucesso de vendas na época.
Foi nesse momento que teve a ideia de construir uma cidade no Brasil, mais precisamente no Estado do Pará, para explorar e plantar seringueiras a fim de se tornar autossuficiente da borracha necessária para produzir seus carros e, com isso, fugir das imposições dos ingleses (que produziam a borracha na Malásia, então colônia britânica), visto que o Brasil não detinha mais o monopólio da produção de látex.
A intenção de Henry Ford, contudo, não era apenas essa, ele queria levar progresso para aquele rincão do País e desenvolver a região industrial e socialmente. Assim, no final de 1927, talvez desconhecendo algumas das dificuldades que iria enfrentar, comprou terras e deu início à construção de Fordlândia (atualmente pertencente ao município de Aveiro/PA), às margens do rio Tapajós, mandando para lá engenheiros e trabalhadores, os quais iriam ensinar os nativos brasileiros.
Essa adaptação, no entanto, não foi como Henry Ford desejava. Os brasileiros, apesar dos excelentes salários pagos pela empresa, não se afeiçoaram ao serviço, sendo desidiosos e envolvidos com bebida, prostituição, e toda sorte de problemas que não coadunavam com a cultura do fordismo. Para Roger D. Colacios, autor de excelente resenha sobre o livro de Greg Grandin [2],
Ford não abriu a empresa ao capital financeiro, mantendo-a longe de Wall Street, e também não fazia parcerias com outras indústrias, não procurava o monopólio sobre determinado produto, apesar de controlar a produção de matérias-primas e peças de forma exclusiva para seus carros. Os trabalhadores das fábricas eram mantidos na linha, não somente de montagem, mas pela regularização e vigilância da vida cotidiana, como os hábitos alimentares e de higiene. Proibiu o quanto pode a formação de sindicatos, até mesmo com o uso de violência, e mesmo assim pagava os maiores salários dos EUA, o famoso “Dia de Cinco Dólares”. Manipulava gerentes e administradores, controlando as decisões e lhes dando prêmios pelo bom trabalho executado. O Fordismo significou não apenas um sistema industrial, fechado no modo de produção, mas todo um conjunto de regras de conduta e uma forma de vida, que incutia nos funcionários e que tentava transformar o mundo. Mas a Amazônia era outro mundo.
Como diz o povo, “é o olho do dono que engorda o gado!”, e nesse ponto o todo poderoso Henry Ford foi omisso. Ele nunca esteve no Brasil e a corrupção correu solta. Além desse fator outros contribuíram para o insucesso da empresa na selva brasileira, destacando o já citado Roger D. Colacios [3]
que o percurso de quase duas décadas girou em torno de corrupção, ignorância, desmatamentos, enganos, queimadas, lazer, trabalho, revoltas, padronização, recomeços, fungos e insetos, militares, política, e acima de tudo, quase nenhuma borracha produzida.
Outra não poderia ser a decisão da Ford exceto dispensar os empregados e fechar a fábrica, deixando para traz, como relata Daniela de Oliveira também comentando o livro de Grandin [4],
casas em estilo norte-americano, campo de golfe, cinema, escolas, hospital, estações de captação, tratamento e distribuição de água; usinas de força; estradas; portos fluviais; estação de rádio e telefonia, além da infraestrutura administrativa.
Como se percebe, a experiência da Ford Motors Company no Brasil não passou despercebida, ganhando em Camaçari (BA) mais um capítulo na sua trama.
Resta saber qual o legado que será deixado na cidade baiana, sendo que em Fordlândia apenas restaram imagens de uma cidade devastada, um sonho que virou pesadelo.
Nos dias de hoje na região de Fordlândia e Belterra (município vizinho onde a Ford se instalou após o fracasso da plantação das seringueiras em Fordlândia e que também sofreu com a saída da empresa em 1945) a plantação de soja está tomando conta. Problema é que estão plantando soja em plena floresta amazônica, fator que contribui para o desmatamento da área e, assim como ocorreu com a empresa automobilística, por certo não deixará nada de bom para o futuro, prejudicando moradores, pequenos agricultores e a comunidade indígena.
Essa questão foi tratada no premiadíssimo documentário Beyond Fordlândia (trailers: https://beyondfordlandia.com/watch-online), do professor Marcos Colón, da Universidade Estadual da Flórida (EUA), lançado em 2017, que mostra a caminhada de Henry Ford na região até o plantio de soja e seus efeitos para a terra e a comunidade local.
Ao contrário de Fordlândia, que dependia exclusivamente da Ford, Camaçari é um grande polo petroquímico e está situada na região metropolitana de Salvador (Fordlândia estava a aproximadamente 1.300 km de Santarém). A cidade irá superar essa crise. É lá que está o primeiro polo petroquímico planejado do Brasil e o maior complexo industrial integrado do Hemisfério Sul, possuindo quase uma centena de empresas instaladas no local.
A dificuldade enfrentada agora não será eterna e Camaçari não desparecerá do mapa, como quase ocorreu com Fordlândia. Também não será dominada pelo plantio de soja, visto estar em região metropolitana e industrializada.
Resta a expectativa de tempos melhores, Sendo o baiano um povo esperançoso e de muita fé, fica a lição de Santo Agostinho, pois, “enquanto houver vontade de lutar haverá esperança de vencer”.
Cristian Luis Hruschka é advogado e professor. Autor do livro "Na Linha da Loucura", Ed. Minarete/Legere, 2014.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/01/saida-da-ford-deixa-rastro-de-desemprego-e-devasta-economia-de-camacari-ba.shtml (acesso: 17/01/22, 20:10h)
[2 https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/5026743.pdf (acesso: 17/01/22, 23:10h)
[3] Idem nota “ii”
[4] https://www.scielo.br/j/hcsm/a/cdZY7WJFCJ6CLVqzNDjTPsS/?lang=pt (acesso: 17/01/22, 23:26h)
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