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"A Maçã Envenenada", Michel Laub

DO SUICÍDIO E OUTROS DEMÔNIOS


Cristian Luis Hruschka

LAUB, Michel. A Maça Envenenada, São Paulo: Cia. das Letras, 119 pág.

Lembro bem quando Kurt Cobain morreu. Seu suicídio marcou minha geração e pensávamos que nada poderia substituir o líder do Nirvana. A banda se desfez com o passar dos anos. Não resistiu a perda. Muitos não se recordam deles, mas a capa iconográfica do álbum Nevermind (1991) é lembrada sempre. Reportagens com o bebê (Spencer Elder, hoje com mais de 20 anos de idade) mergulhando e a nota de um dólar pipocam pela internet. Outras bandas vieram, a onda grunge foi acabando e agora vive apenas na cabeça daqueles que tiveram o privilégio de curtir a fase dos grupos de Seattle.

O livro de Michel Laub, escritor de qualidade comprovada e autor de "Diário da Queda", primeiro livro da trilogia que segue com "A Maçã Envenenada", possui como tema principal um show da banda estadunidense na cidade de São Paulo (SP), ocorrido em 1993. O narrador, músico em uma banda de rock, reside em Porto Alegre e presta serviço militar. Justamente no dia da apresentação terá que ficar de guarda. Surge então a dúvida sobre o que fazer: ir ou não ao show?

Em 101 capítulos curtos, Laub, através de seu personagem narrador, alterna relatos do passado e do presente, não tendo a apresentação dos fatos uma ordem cronológica de acontecimentos, ainda que ao final possam convergir para um desfecho harmônico. Essa alternância temporal deixa o leitor curioso, contudo, pode criar confusão naquele que estiver desatento ou for descuidado.

O narrador, envolvido em uma presepada no quartel que lhe custou caro, literalmente, obriga-se a pagar outro milico para escapar da prisão e humilhação. Tal fato não permite que vá até a capital paulista assistir o show do Nirvana. Sua namorada, Valéria, personagem dos mais interessantes na obra, viaja com um colega conhecido pelo apelido de "Unha", também integrante da banda, desafeto do narrador em virtude de ciúmes da namorada, o que não era raro de acontecer nas bandas formadas por adolescentes.

Paralelo a essa trama, o narrador, agora como jornalista, fala de uma entrevista que fez com Immaculée Ilibagiza, sobrevivente do genocídio de Ruanda, que optou por viver ao invés de render-se às adversidades da vida. Este posicionamento é antagônico ao de Kurt Cobain que ceifou sua própria existência. O suicídio "é uma traição aos outros e a si mesmo, ao que você poderia se tornar no futuro, uma pessoa diferente que nunca poderá existir porque a linha foi interrompida antes que os erros sejam corrigidos" (pág. 103). Certamente a definição demonstra a posição de Laub sobre o assunto, lançada pelo narrador.

Todos esses fatos, como já dito, são narrados de maneira desordenada, não sequencial, alinear, porém, coerente. Ainda que fictício, "A Maça Envenenada" tem toques autobiográficos, quanto mais se atentarmos para o fato de que no ano de 1993 Laub estava com vinte anos e por certo era fã do Nirvana e de bandas como Pearl Jam e Alice In Chains.

O livro foi segundo colocado no prêmio Jabuti de 2014, categoria romance.

Trecho:

"Valéria teve uma parada cardíaca menos de uma hora depois do show do Nirvana, na praça próximo ao Morumbi, pouco mais de vinte e quatro horas após eu ter preferido pagar o Diogo a pegar o avião. De eu ter prometido ao Diogo que arrumaria o dinheiro na semana seguinte. De ter decidido devolver a passagem, vender o ingresso por meio de outro amigo que iria a São Paulo, poupar o que havia reservado para as despesas de viagem, tudo em troca de não ir para a cadeia e perder a minha primeira namorada" (pág. 96/97).

__________________

CRISTIAN LUIS HRUSCHKA, responsável pelo site www.resenhas-literarias.blogspot.com.br. É autor do livro "Na Linha da Loucura", publicado em 2014 pela editora Minarete/Legere (www.facebook.com.br/nalinhadaloucura). E-mail: clhadv@hotmail.com

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