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"A Queda", Albert Camus

O MEDO DE SER JULGADO


Cristian Luis Hruschka


CAMUS, Albert. A Queda, 24ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2020, 110 p., Tradução: Valerie Rumjanek.


Publicado em 1956 pela famosa editora francesa Gallimard, “A Queda” foi um dos últimos livros escritos por Camus, precocemente morto em janeiro de 1960 num acidente automobilístico no interior da França com apenas 46 anos de idade. Contudo, La Chute (título em francês) impulsionou e justificou em definitivo o Nobel de Literatura recebido pelo escritor no ano seguinte, coroando a excelência de sua obra.


Trata-se de um monólogo onde o narrador, Jean-Baptiste Clamence, advogado autointitulado de “juiz-penitente”, encontra um compatriota no bar “Mexico City”, localizado no porto de Amsterdam (Holanda).


Andando pelas redondezas da cidade com seu novo amigo, durante cinco dias Jean-Baptiste enaltece suas qualidades, sua inteligência, força, beleza:


“Só reconhecia em mim superioridades, o que explicava minha

benevolência e serenidade. Quando me ocupava dos outros,

era por pura condescendência, em plena liberdade,

e todo mérito revertia em meu favor;

eu subia um degrau no amor que dedicava a mim mesmo.”


Considerava-se o senhor da razão, com predicados invejáveis e um grande amante, libertino, mantendo mais de um relacionamento ao mesmo tempo. Ainda que se trate de uma obra de ficção, sendo doutor em Filosofia, certamente Camus refletiu muito nesse ponto, visto ser famoso pelos casos extraconjugais que atormentavam a família. Camus, assim como o narrador, também era um homem charmoso e conquistador, uma pessoa muito inteligente e cativante quando queria agir dessa forma. Suas fotografias, principalmente aquelas com o famoso sobretudo e fumando, deixam claro o sucesso que devia fazer com o público feminino.


De todo o relato no narrador na trama, chama atenção o desprezo pelos acontecimentos, sendo esta uma das qualidades da escrita de Camus, considerado por muitos como um filósofo que defende a teoria do absurdo, onde, por exemplo, de nada adianta planejar, programar e criar expectativas de vida sendo que a única certeza que temos é a de que iremos morrer.


Exemplo disso é o relato do suicídio ocorrido na ponte, quando o narrador cruza com uma mulher e depois ouve “o barulho de um corpo que cai na água”. Diz o advogado Jean-Baptista Clamence:


“Quis correr e não me mexi.

Acho que tremia de frio e de emoção.

Dizia a mim mesmo que era preciso agir rapidamente e

Sentia uma fraqueza irresistível invadir-me o corpo.

Esqueci-me do que pensei então.”


A passagem lembra muito o primeiro parágrafo de “O Estrangeiro”, possivelmente o melhor livro de Camus:


“Hoje, mamãe morreu.

Ou talvez ontem, não sei bem.

Recebi um telegrama do asilo:

‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentimos pêsames.’

Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.”


A questão filosófica que envolve a morte costuma ser abordada por Camus ao longo do texto, aparecendo em diversos de seus escritos. Em “A Queda” não é diferente, sendo o tema bastante explorado para reflexões. Contudo, por mais que o narrador ame a vida e glorifique seus atributos, em determinado momento ocorre a suspeita de que ele “não fosse digno de tanta admiração”.


A partir desse instante o narrador passa a temer o fato de que também pode ser julgado, que podia sangrar e, portanto, estar sujeito à análise de todos. À certa altura, relata ao seu compatriota:


“Tinha vivido durante muito tempo na ilusão de um acordo geral, ao passo que,

de todos os lados dissolviam-se sobre mim, distraído e sorridente, os juízos,

as flechas e as zombarias. A partir do dia em que me dei conta, veio-me a lucidez,

recebi todos os ferimentos ao mesmo tempo e perdi de toda uma só vez as minhas forças.

Todo o universo pôs-se, então, a rir à minha volta.”


Como não poderia deixar de ser, o livro de Camus é altamente reflexivo, fazendo-nos compreender um pouco mais da existência humana. Sua leitura instiga e deve ocorrer de maneira compenetrada. Não é livro para diversão.


CRISTIAN LUIS HRUSCHKA é autor do livro "Na Linha da Loucura", publicado em 2014 pela editora Minarete/Legere (www.facebook.com.br/nalinhadaloucura). E-mail: clhadv@hotmail.com.



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