Pular para o conteúdo principal

"O Conto da Aia", Margaret Atwood

DISTOPIA FEMININA?
Cristian Luis Hruschka

Atwood, Margaret. O Conto da Aia, Rio de Janeiro: Rocco, 2017, 366 pág. Tradução: Ana Deiró.

O Conto da Aia sempre esteve presente na minha lista de leituras (interminável!), mas somente agora tive a oportunidade de ler. Comprei o livro por estar em destaque na livraria com uma propaganda da séria de TV baseada na obra, que não assisti. 

Trata-se do livro mais emblemático e famoso da escritora canadense Margaret Atwood, vencedora de inúmeros prêmios literários entre eles o Arthur C. Clarke (1987), concedido aos melhores livros de ficção científica.

Toda e qualquer resenha que você ler sobre O Conto da Aia mencionará a palavra distopia que, a grosso modo, significa o caos total, a ausência de esperança diante de um sistema totalitário e opressor.

O enredo não foge à essa regra, porém, é direcionado às mulheres, colocando-as em situações de completa submissão.

Publicado em 1985, é narrado por Offred, protagonista principal. A trama se passa após eventos ambientais, epidemias e um grupo terrorista derrubar o governo norte-americano sob o pretexto de instaurar uma nova ordem. Dentro dessa arrumação, o grupo chamado "Filhos de Jacó" instaura um regime totalitário e fundamentalista cristão (República de Gilead), onde são retirados todos os direitos das mulheres. Entre elas, somente são valorizadas as mulheres que podem gerar filhos, as chamadas "Aias", que são recolhidas e ficam à disposição em residências (o livro não especifica de foma clara o lugar) onde devem responder a um "Comandante". Este, por sua vez, possui uma Esposa, contudo, como ela é infértil, as relações são mantidas com as Aias para obtenção de filhos.

O enredo, todo em primeira pessoa, é bastante complicado nos primeiros capítulos, devendo o leitor, no entanto, ser persistente para, com o desenrolar da história, entender os fatos.

É um livro difícil, pesado e agressivo às mulheres. A protagonista, por exemplo, não pode sair sozinha, conversa com poucas pessoas, não pode ler, tampouco escrever, submetida à constante vigilância pelos chamados "Olhos", pessoas que fiscalizam suas atividades. As mulheres, salvo a esposa do Comandante, possuem apenas um tipo de vestimenta, consistente em um chapéu e uma túnica, vermelha para as Aias e de cor diferente para as "Marthas", mulheres inférteis que vivem no mesmo ambiente da Aias exercendo verdadeira lavagem cerebral destas para que aceitem seu destino: procriação!

A relação sexual entre a Aia e o Comandante é um dos pontos mais chocantes do livro. Como a Esposa do Comandante não pode ter filhos, ela se deita na cama e a Aia fica entre suas pernas, não podendo expressar qualquer reação. A cópula, verdadeiro estupro, ocorre de maneira mecânica, autômata, após uma espécie de cerimônia religiosa, visando apenas a concepção de uma criança. Dentro desse ambiente absurdo, a Esposa se sente mãe, como se fertilizada fosse.

O Comandante, porém, acaba se encontrando com Offred em outras oportunidades, equiparando sua Aia, verdadeira escrava sexual, não para o prazer, mas sim para a procriação, a uma amante, ainda que tal situação possa ser absurda:

"Minha presença aqui é ilegal. É proibido para nós estarmos sozinhas com os Comandantes. Somos para fins de procriação, não somos concubinas, garotas gueixas, cortesãs. Pelo contrário , tudo o que era possível foi feito para nos distanciar dessa categoria. Presume-se que não há nada de divertido a nosso respeito, nenhum espaço para que luxúrias secretas floresçam é permitido; nem quais quer favores devem ser obtidos por persuasão, por ele ou por nós, não devem existir quaisquer oportunidades ou atividades que possam dar ensejo a amor. Somos úteros de duas pernas, apenas isso: receptáculos sagrados, cálices ambulantes" (pág. 165).

A trama ocorre poucos anos depois da publicação do livro, não havendo uma data específica no texto, mas é possível perceber que houveram mudanças no ambiente, sofrendo as pessoas com doenças sexualmente transmissíveis e o regime totalitário imposto. Entre os direitos sonegados está o da ampla defesa, bastando ao Comandante acusar qualquer mulher para que ela seja enforcada, sem direito ao contraditório e muito menos a um advogado.

Vive-se em um ambiente machista, onde os homens, mesmo casados, mantém relações com outras mulheres, servindo as Aias para gerar filhos saudáveis e tantas outras encontradas na "Casa de Jezebel", algo assemelhado a um grande bordel ondem encontram mulheres desvalorizadas pela sociedade existentes, apenas para divertimento.

Offred não é o nome real da protagonista, significando, literalmente, que ela pertence ao Fred, nome do Comandante (Of Fred = do Fred). Offred não possui amigos, sendo-lhe mais próxima outra Aia, chamada Ofglen, que ao final denota pertencer a um movimento de resistência que luta contra o sistema vigente.

A narradora também não se mostra muito segura sobre suas opiniões. Alguns sentimentos a afligem, como a culpa decorrente da paixão repentina por outro personagem, visto que antes dessa nova ordem era casada e tinha uma filha, cujas pessoas despareceram sem deixar vestígios, tampouco tendo lembranças claras sobre eles: "Eu os tenho, esses ataques de passado, como uma vertigem, uma onda engolfando e passando por cima da minha cabeça" (pág. 65).

O livro deixa inúmeras pontas abertas, sem que o leitor saiba encontrar justificativa para alguns eventos. Mais desesperadora fica a leitura quando, no final do seu relato, Offred simplesmente embarca em uma camionete ("na escuridão ali dentro; ou então na luz") e o próximo capítulo inicia como uma palestra proferida no ano de 2195 sobre "Estudos Gileadeanos", abordando "O Conto da Aia", tentando desvendar as memórias deixadas por Offred.

Enfim, um livro fantástico, que deve ser lido e relido para que algumas respostas possam ser encontradas, ainda que surjam mais e mais dúvidas. É um dos clássicos da literatura atual, merecendo leitura atenta e reflexiva.

_____________

CRISTIAN LUIS HRUSCHKA, responsável pelo site www.resenhas-literarias.blogspot.com.br. É autor do livro "Na Linha da Loucura", publicado em 2014 pela editora Minarete/Legere (www.facebook.com/nalinhadaloucura). E-mail: clhadv@hotmail.com.

Comentários

  1. Incrível resenha! Conheço a série e sou louca para ler o livro. Depois de ler suas palavras, estou ainda mais ansiosa e quero parabenizá-lo pela excelente crítica.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Outras postagens ✓

"Einstein no Espaço-Tempo", Samuel Graydon

BREVE HISTÓRIA DE UM GÊNIO Cristian Luis Hruschka GRAYDON, Samuel. Einstein no Espaço-Tempo: a vida de um gênio em 99 partículas , Rio de Janeiro: Sextante, 2024, 304 páginas (Tradução: André Fontenelle).   “Eu quero minha paz. Quero saber como Deus criou o mundo. Não estou interessado neste ou naquele fenômeno, no espectro disto ou no elemento daquilo. Quero saber o que Ele pensa, o resto são detalhes” (Albert Einstein)   Muito já se escreveu sobre o gênio da física e dificilmente alguma biografia conseguirá esmiuçar de maneira detalhada toda a vida de Albert Einstein (1879-1955). O livro de Samuel Graydon certamente não tem essa pretensão, porém, apresenta uma viagem deliciosa sobre a jornada desse importante cientista. O livro é dividido em 99 capítulos curtos e objetivos, que não respeitam, necessariamente, uma ordem cronológica definida. Contudo, como não poderia ser diferente, começam com o nascimento e crescimento de Einstein, assim como seu difícil iní...

"O Homem Nu", Fernando Sabino

UM POUCO DE SABINO E SUA OBRA Cristian Luis Hruschka O HOMEM NU, Fernando Sabino, 38ª. ed., Rio de Janeiro: Ed. Record, 1998, 192 p. Conheci a obra de Fernando Sabino (1923-2004), em dezembro de 2006. Até então só tinha ouvido falar de seus livros sem ter me arriscado a ler algum deles. Bendita hora em que comprei “A Faca de dois Gumes” (Ed. Record, 2005), na praia, em uma banca de revistas. Foi paixão à primeira vista, ou melhor, à primeira leitura. O livro é maravilhoso, composto das novelas “O Bom Ladrão”, “Martini Seco” e “O Outro Gume da Faca”. Uma trilogia prodigiosa que leva o leitor a duvidar do certo e do errado, colocando-o no lugar dos personagens e ao mesmo tempo censurando suas atitudes. Li o livro em uma pegada. Dias após retornei à mesma banca de revistas para comprar “O Encontro Marcado”, livro mais importante da obra de Fernando Sabino, traduzido para diversos idiomas pelo mundo afora e que já ultrapassa a 80ª. edição aqui no Brasil. Não tinha mais jeito,...

"Onde os velhos não têm vez", Cormac McCarthy

SANGUE E VIOLÊNCIA NA FRONTEIRA Cristian Luis Hruschka   McCARTHY, Cormac. Onde os velhos não têm vez , 2ª ed., Rio de Janeiro: Alfaguara, 2023, 229 páginas (Tradução: Adriana Lisboa).   Visceral! Lançado em 2005, o romance “Onde os velhos não têm vez”, de Cormac McCarthy, é violento, direto e sensacional. Falecido em junho de 2023, McCarthy é considerado um dos maiores escritores norte-americanos dos últimos tempos. Ficou conhecido por romances com alto grau de violência e economia de detalhes. O livro “Onde os velhos não têm vez”, reeditado pela Ed. Alfaguara, é prova disso. Ambientado no Texas, na divisa com o México, a trama avança com velocidade, narrando a fuga de Llwelyn Moss (veterano do Vietnã) do “carniceiro” Anton Chigurh, o qual, por sua vez, é perseguido pelo xerife Ed Tom Bell, já com certa idade e desanimado com o aumento da violência na região. Tudo começa quando Moss, durante uma caçada na região árida próxima ao México, se depara com o resul...

"Depois do Último Trem", Josué Guimarães

LITERATURA RECOMENDADA Cristian Luis Hruschka GUIMARÃES, Josué. Depois do Último Trem, 2a. ed., Porto Alegre: Ed. L & PM, 1979, 141 pág. O Estado do Rio Grande do Sul sempre apresentou ótimos escritores. Érico Veríssimo na prosa e Mário Quintana na poesia, com certeza os maiores representantes. Outros estão meio esquecidos, mas suas obras não podem ser deixadas de lado. Josué Guimarães é um deles. Nascido na cidade de São Jerônimo (RS), teve uma vida movimentada. Trabalhou em diversos jornais de âmbito nacional, sendo perseguido durante o regime militar, quando esteve na clandestinidade escrevendo por meio de pseudônimos. Falecido em 1986, deixou um grande número de obras, adultas e infantis. Seus livros de maior expressão são "Enquanto a noite não chega", reconhecido pela crítica como obra máxima, "Dona Anja", "Tambores Silenciosos" e "Camilo Mortágua". Lembrei de seu nome quando estava lendo o artigo do Alberto Mussa no suplemento ...

"O Alienista", Machado de Assis

O ALIENISTA EM QUADRINHOS Cristian Luis Hruschka O ALIENISTA, Machado de Assis, adaptado por César Lobo (arte) e Luiz Antonio Aguiar (roteiro), São Paulo: Ática, 2008, 72 pág. (Clássicos Brasileiros em HQ). “A loucura, objeto de meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”. (Machado de Assis, “O Alienista”). O ano que passou foi considerado o “Ano de Machado de Assis”, homenagem ao escritor brasileiro por força do centenário de sua morte ocorrida em 29 de setembro de 1908. À guisa de diversas homenagens, muito se falou e comentou à respeito, inclusive no segmento das histórias em quadrinhos. Nessa senda, o trabalho realizado por César Lobo e Luiz Antonio Aguiar, este profundo conhecedor da obra do Bruxo do Cosme Velho (tendo publicado em 2008 o “Almanaque Machado de Assis” – Ed. Record), merece destaque. Em exemplar primoroso, os autores adaptaram a novela “O Alienista”, um dos melhores trabalhos...

"Fordlândia", Greg Grandin

CAMAÇARI E FORDLÂNDIA: REFLEXOS DE UM ABANDONO Cristian Luis Hruschka GRANDIN, Greg. “Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva” , Ed. Rocco, 2010.   Em janeiro de 2022 fez um ano que a Ford Motors Company fechou suas portas em Camaçari, cidade industrial próxima a Salvador, capital da Bahia. Criada por Henry Ford (1863/1947) em 1903, a empresa automobilística empregava mais de quatro mil e quinhentos pessoas.   Segundo reportagem da Folha, assinada pelos jornalistas Leonardo Vieceli e João Pedro Pitombo [1], o fechamento da empresa causou um prejuízo milionário ao Estado da Bahia e ao município, afetando o comércio local e o setor de serviços em cerca de R$ 20 milhões por mês, valor este que advinha dos empregos diretos e indiretos da multinacional norte americana. Escolas e faculdades perderam alunos e tiveram que refinanciar dívidas tributárias. Empresas fecharam. Diversos trabalhadores deixaram a cidade para seguir com a vida e alguns tentam e...

"O Testamento de Maria", Colm Tóibín

EVANGELHO APÓCRIFO Cristian Luis Hruschka   TÓIBÍN, Colm. O Testamento de Maria , São Paulo: Companhia das Letras, 2013, 87 páginas (Tradução: Jorio Dauster).   “Disse-lhe, então, o anjo: Maria, não temas, porque achaste graça diante de Deus. E eis que em teu ventre conceberás e darás à luz um filho, e pôr-lhe-ás o nome de Jesus. Este será grande, e será chamado filho do Altíssimo; e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; E reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim.” (Lucas 1:30-33) O livro escrito por Colm Tóibín (Irlanda, 1955) choca os católicos mais fervorosos, sendo uma afronta às tradições bíblicas e à santidade de Maria, mãe de Jesus. Trata-se do relato da Virgem quanto aos últimos anos de Jesus Cristo e sua peregrinação para levar a palavra de Deus e salvação às pessoas. Contudo, a narrativa apresenta uma Maria bastante humana e inconformada com o caminho que seu filho tomou, questionando a forma que Ele se vestia e...

"Jorge, um Brasileiro", Oswaldo França Júnior

ROMANCE EM BATE-PAPO FRANÇA JÚNIOR, Oswaldo. Jorge, um Brasileiro, 1 ª  ed., Rio de janeiro: Ed. Bloch, 1967, 269 pág. Sempre fui avesso às listas dos mais vendidos. Desconheço se os clássicos de hoje fizeram parte de alguma relação no passado (se é que existia) que indicasse se tratar de uma obra indispensável, tampouco com qualidade literária. Por esse motivo, gosto de garimpar em sebos livros que já estão esquecidos pela nova geração mas que não podemos deixar de mencionar em virtude da qualidade de suas palavras. Um exemplo dessa boa literatura é "Jorge, um Brasileiro", do escritor mineiro Oswaldo França Júnior, que adquiri pelo simbólico valor de R$ 5,00 (cinco reais). Um absurdo, quanto mais por se tratar da primeira edição. Nascido em 21 de julho de 1936 na cidade do Serro, Estado de Minas Gerais, França Júnior foi cedo para a cidade do Rio de Janeiro (RJ) onde se tornou piloto da Força Aérea Brasileira. Expulso em 1964 por ocasião do golpe militar implantado no ...

"O Útimo Homem Branco", Mohsin Hamid

PROMETE MAS NÃO ENTREGA Cristian Luis Hruschka   HAMID, Mohsin. O Último Homem Branco , São Paulo: Companhia das Letras, 2023, 134 páginas (Tradução: José Geraldo Couto).   Lançado em 2022, o livro de Mohsin Hamid foi recebido como um sucesso de crítica. Nascido no Paquistão, o escritor já viveu na Califórnia, Nova Iorque e Londres, sendo colaborador de jornais como The New York Times e Washington Post. O livro conta a história de Anders, um homem branco que, em certa manhã, ao acordar, “descobriu que tinha adquirido uma profunda e inegável tonalidade marron”. A temática proposta é muito inteligente e gera controvérsias das mais variadas, principalmente quanto à intolerância racial. Escrito de maneira arrastada, o livro não prende o leitor e, na minha singela opinião, assim segue até o final. A ideia de abordar uma questão tão importante, com grande clamor social e por muitos tida como apavorante por colocar em xeque a “supremacia do homem branco”, que estaria ...

"A Maçã Envenenada", Michel Laub

DO SUICÍDIO E OUTROS DEMÔNIOS Cristian Luis Hruschka LAUB, Michel. A Maça Envenenada, São Paulo: Cia. das Letras, 119 pág. Lembro bem quando Kurt Cobain morreu. Seu suicídio marcou minha geração e pensávamos que nada poderia substituir o líder do Nirvana. A banda se desfez com o passar dos anos. Não resistiu a perda. Muitos não se recordam deles, mas a capa iconográfica do álbum  Nevermind  (1991) é lembrada sempre. Reportagens com o bebê (Spencer Elder, hoje com mais de 20 anos de idade) mergulhando e a nota de um dólar pipocam pela internet. Outras bandas vieram, a onda grunge foi acabando e agora vive apenas na cabeça daqueles que tiveram o privilégio de curtir a fase dos grupos de Seattle. O livro de Michel Laub, escritor de qualidade comprovada e autor de "Diário da Queda", primeiro livro da trilogia que segue com "A Maçã Envenenada", possui como tema principal um show da banda estadunidense na cidade de São Paulo (SP), ocorrido em 1993. O narrador, m...