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"A Cidade Inteira Dorme e Outros Contos", Ray Bradbury

CONTOS FANTÁSTICOS

Cristian Luis Hruschka

BRADBURY, Ray. A Cidade Inteira Dorme e Outros Contos. 2a. Ed., São Paulo: Globo (Biblioteca Azul), 2013, 192 p. (tradução: Deisa Chamahum Chaves).

O nome de Ray Bradbury não é estranho para aqueles que gostam de livros de ficção científica. Nascido em 1920, na cidade de Waukegan (Illinois, EUA), teve uma vida longa e movimentada. Faleceu com 91 anos de idade, em Los Angeles (EUA), local em que morou a maior parte de sua vida.

Com diversos livros escritos, muitos não estão traduzidos, seu trabalho de maior sucesso é "Fahrenheit 451", publicado em 1953 (http://resenhas-literarias.blogspot.com.br/2009/03/resenha-fahrenheit-451-ray-bradbury.html).

Sempre que falamos em ficção científica imaginamos viagens intergalácticas, robôs, extraterrestres e monstros de outros planetas, porém, o gênero não se resume a isso, pelo contrário. As melhores histórias são aquelas que abordam mundos paralelos, viagens no tempo, recursos paranormais, sem falar naquelas de conotação política, separadas em distopias ("1984", George Orwell) e utopias ("O Fim da Infância", Arthur C. Clarke).

A ficção científica de Bradbury, no entanto, é permeada de suspense e terror, conferindo-lhe um estilo de escrita "sobrenatural", para não fugir ao tema.

Coloco Ray Bradubury ao lado de Philip K. Dick (1928 - 1986), escritor norte-americano que lhe é contemporâneo, cuja ficção científica gerou trabalhos excelentes como "Minority Report", "Andróides Sonham com Carneiros Elétricos?" (filmado sob o título "Blade Runner: O Caçador de Andróides"), e "O Homem Duplo". Ambos autores escapam um pouco da conotação literal de ficção científica, aqui entendido como espaço sideral, ainda que Bradbury adore passear pelo planeta Marte.

Os contos reunidos no livro "A Cidade Inteira Dorme", selecionados por Ana Helena Souza, demonstram com amplitude a grandeza do autor. Mesclando paisagens marcianas, a povoação do planeta vermelho, questionando a sociedade e modernização da humanidade, Bradbury demonstra toda sua criatividade e talento literário. No conto "O Messias", coloca um rabino, um padre e um reverendo conversando em Marte. Já em "A Autêntica Múmia Egípcia Feita em Casa", uma pacata cidade é sacudida pelo surgimento de uma múmia, porém, só o coronel que lá reside e um menino conhecem o seu segredo.

O conto que dá título ao livro também merece destaque. Nele se verifica o domínio do gênero literário pelo autor. Com um assassino à solta, três amigas seguem firmes ao cinema. Lavinia Lebbs, a mais determinada, não se deixa levar pelas outras e se mostra confiante, zombando da sorte. No entanto, ao retornarem, após acompanhar as duas amigas em casa, ela acredita estar sendo perseguida. O conto tem um final previsível e o último parágrafo traça o destino da personagem ("Atrás dela, na sala de estar, alguém limpou a garganta" - pág. 99), mas a forma da escrita de Bradbury envolve o leitor com diálogos ágeis e objetivos.

No conto "O Homem Ilustrado", publicado em 1950 e posteriormente revisado pelo autor para o livro "The Illustrated Man", lançado no Brasil sob o título "Uma Sombra Passou por aqui" (Record, 1951), um homem gordo tem o corpo tatuado por uma velha bruxa, cega, cujas tatuagens se movimentam. O homem passa a se apresentar para o público, porém, duas tatuagens permanecem tampadas com esparadrapo. A primeira, no peito, quando revelada, mostra o homem matando sua mulher; a outra, nas costa, ainda estava em formação e, quando revelada, vaticina uma imagem ainda mais perturbadora e impressionante.

Há, também, outro conto que leva o leitor à reflexão. Em "O Pedestre", cuja trama transcorre no ano de 2053, o protagonista é abordado por um carro de polícia que lhe projeta violento facho de luz e lhe enche de questionamentos: para onde vai? É casado? Possui ar-condicionado em casa? Qual seu endereço? Profissão? Possui aparelho de TV?

Por mais que o pedestre responda que estava apenas caminhando, é conduzido ao "Centro Psiquiátrico de Pesquisas em Tendências Regressivas", não compreendendo o veículo policial - desacompanhado de qualquer agente, o único para uma cidade de três milhões de  habitantes - o motivo que levaria uma pessoa a apenas caminhar para "tomar um ar e ver as coisas" (pág. 152).

O conto, publicado em 1952, é uma crítica a sociedade que se modernizava, condenando a população à ficar em casa com seus ares-condicionados e televisores. Como o pedestre não era casado e não tinha televisão em sua residência, não houve alternativa ao carro policial exceto deter o cidadão que apenas caminhava, afinal, se "pelo menos tivesse uma esposa para lhe servir de álibi" (pág. 153), quem sabe teria uma motivo justo para sair de casa.

Os contos de Ray Bradbury reunidos na coletânea "A Cidade Inteira Dorme" em sua maioria, estão centrados em situações irreais, abrangendo o gênero da literatura fantástica, fator que torna sua obra ainda mais fascinante. Os contos escolhidos são excelentes. Leitura altamente recomendável!

___________

CRISTIAN LUIS HRUSCHKA, responsável pelo site www.resenhas-literarias.blogspot.com.br. É autor do livro "Na Linha da Loucura", publicado em 2014 pela Editora Minarete/Legere (www.facebook.com/nalinhadaloucura). E-mail: clhadv@hotmail.com.

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