DA ROÇA AO DIREITO

Cristian Luis Hruschka
KIEFER, Charles. Dia de Matar Porco, Porto Alegre: Dublinense, 2014, 112 pág.
Em duas oportunidades estive com o livro de Charles Kiefer nas mãos, porém, acabei optando por outro. Na última vez não tive escolha, levei. Azar o meu não tê-lo comprado já na primeira vez.
Autor de outros livros, entre eles O Pêndulo do Relógio, ganhador do prêmio Jabuti em 1985, prêmio este que o Charles Kiefer ainda ganhou em outras duas oportunidades, o escritor gaúcho também ministra aulas de escrita criativa e comanda oficinas literárias. Seu livro Dia de Matar Porco faz jus à boa fama.
Escrito em primeira pessoa, narra a "autobiografia" de Ariosto Ducchese, cidadão nascido no interior do Rio Grande do Sul que, cansado da roça, resolve se aventurar na vida. Torna-se advogado de sucesso e, no conforto de sua casa, passa a contar sua vida.
Recorrendo à lembranças, Ariosto apresenta a dificuldade em transpor para o papel a sua existência. Para ele "qualquer vida, se descrita com talento, pode se transformar em obra de arte (...). A questão, sempre, é o que contar e como contar, com que linguagem. É simples, mas o simples é que é difícil." (pág. 96).
Segundo relata, chegou a escrever inúmeras páginas sobre sua longa jornada, iniciando pelo dia que nasceu e assim por diante. Porém, mais amadurecido, percebeu que não iria ser a melhor maneira de apresentar sua história, afinal, "ninguém mais tem paciência nem tempo para narrativas intermináveis" (pág. 100). É de grande beleza poética sua conclusão:
"A cada releitura, fui destruindo algumas páginas, até que não restasse pedra sobre pedra e o grande mural da minha vida se reduzisse a pedaços, entulhos de construção. E, das ruínas, surgi eu, me ipsum [eu mesmo], Ariosto Duchesse." (pág. 24/25).
Advogado, mesmo acostumado com as letras, tem dificuldade para escrever sua autobriografia. O problema é conhecido de quem escreve. Mesmo com uma boa história na cabeça, transpor isso para o papel exige esforço e dedicação. Não basta ter uma grande ideia ou um grande tema, é preciso saber passar isso para o texto:
"Não causará espanto, pois, que eu também confesse as dificuldades técnicas que comecei a enfrentar assim que digitei as primeiras linhas. Sou capaz de fazer petições, relatórios, pareceres, ensaios, qualquer texto que exija tirocínio, exatidão e clareza, mas nunca havia tentado a ficção." (pág. 21).
Mas e o porco? Onde entra o porco do título? Como dito anteriormente, Ariosto Duchesse nasceu na roça, onde se desenvolveu o fato surpreendente do final de sua biografia, um exemplo de amor, de amor fraternal, que custou a morte de outra pessoa. O porco é o símbolo dessa época difícil, de labuta, de suor.
Animal fantástico, pode ser domesticado como um cachorro. Onívoro, é objeto de estudo da doenças humanas, estando entre os animais mais inteligentes que existem. George Orwell, no clássico "A Revolução do Bichos", já lhe fez justiça. Ainda que desprezado por parte da população e por algumas religiões, merece nossa total consideração.
Essa referência ao porco representa as lembranças de Ariosto Duchesse e a maneira como seu caráter e personalidade foram formados. São detalhes importantes que moldaram o homem e o permitiram vencer na vida:
"A ética colona é rigidamente igualitária. Nada é meu - tudo é nosso. As roupas que eu usava haviam pertencido a meus irmãos mais velhos. E depois que eu as usei, foram passadas adiante ou reformadas. No universo do minifúndio, e da pobreza digna, não há espaço para desperdício. Do porco, se aproveita tudo. Menos o berro, como diz a anedota." (pág. 43).
"Dia de Matar Porco" é um livro muito bom, para ser lido em uma só pegada. Tenho certeza que muitos leitores se identificarão com diversas passagens, especialmente com as dificuldades da vida interiorana, justificando o êxodo rural e a super povoação dos centros urbanos. Vale a leitura!
__________________
CRISTIAN LUIS HRUSCHKA, responsável pelo site www.resenhas-literarias.blogspot.com.br. É autor do livro "Na Linha da Loucura", publicado em 2014 pela editora Minarete/Legere (www.facebook.com.br/nalinhadaloucura). E-mail: clhadv@hotmail.com

Cristian Luis Hruschka
KIEFER, Charles. Dia de Matar Porco, Porto Alegre: Dublinense, 2014, 112 pág.
Em duas oportunidades estive com o livro de Charles Kiefer nas mãos, porém, acabei optando por outro. Na última vez não tive escolha, levei. Azar o meu não tê-lo comprado já na primeira vez.
Autor de outros livros, entre eles O Pêndulo do Relógio, ganhador do prêmio Jabuti em 1985, prêmio este que o Charles Kiefer ainda ganhou em outras duas oportunidades, o escritor gaúcho também ministra aulas de escrita criativa e comanda oficinas literárias. Seu livro Dia de Matar Porco faz jus à boa fama.
Escrito em primeira pessoa, narra a "autobiografia" de Ariosto Ducchese, cidadão nascido no interior do Rio Grande do Sul que, cansado da roça, resolve se aventurar na vida. Torna-se advogado de sucesso e, no conforto de sua casa, passa a contar sua vida.
Recorrendo à lembranças, Ariosto apresenta a dificuldade em transpor para o papel a sua existência. Para ele "qualquer vida, se descrita com talento, pode se transformar em obra de arte (...). A questão, sempre, é o que contar e como contar, com que linguagem. É simples, mas o simples é que é difícil." (pág. 96).
Segundo relata, chegou a escrever inúmeras páginas sobre sua longa jornada, iniciando pelo dia que nasceu e assim por diante. Porém, mais amadurecido, percebeu que não iria ser a melhor maneira de apresentar sua história, afinal, "ninguém mais tem paciência nem tempo para narrativas intermináveis" (pág. 100). É de grande beleza poética sua conclusão:
"A cada releitura, fui destruindo algumas páginas, até que não restasse pedra sobre pedra e o grande mural da minha vida se reduzisse a pedaços, entulhos de construção. E, das ruínas, surgi eu, me ipsum [eu mesmo], Ariosto Duchesse." (pág. 24/25).
Advogado, mesmo acostumado com as letras, tem dificuldade para escrever sua autobriografia. O problema é conhecido de quem escreve. Mesmo com uma boa história na cabeça, transpor isso para o papel exige esforço e dedicação. Não basta ter uma grande ideia ou um grande tema, é preciso saber passar isso para o texto:
"Não causará espanto, pois, que eu também confesse as dificuldades técnicas que comecei a enfrentar assim que digitei as primeiras linhas. Sou capaz de fazer petições, relatórios, pareceres, ensaios, qualquer texto que exija tirocínio, exatidão e clareza, mas nunca havia tentado a ficção." (pág. 21).
Mas e o porco? Onde entra o porco do título? Como dito anteriormente, Ariosto Duchesse nasceu na roça, onde se desenvolveu o fato surpreendente do final de sua biografia, um exemplo de amor, de amor fraternal, que custou a morte de outra pessoa. O porco é o símbolo dessa época difícil, de labuta, de suor.
Animal fantástico, pode ser domesticado como um cachorro. Onívoro, é objeto de estudo da doenças humanas, estando entre os animais mais inteligentes que existem. George Orwell, no clássico "A Revolução do Bichos", já lhe fez justiça. Ainda que desprezado por parte da população e por algumas religiões, merece nossa total consideração.
Essa referência ao porco representa as lembranças de Ariosto Duchesse e a maneira como seu caráter e personalidade foram formados. São detalhes importantes que moldaram o homem e o permitiram vencer na vida:
"A ética colona é rigidamente igualitária. Nada é meu - tudo é nosso. As roupas que eu usava haviam pertencido a meus irmãos mais velhos. E depois que eu as usei, foram passadas adiante ou reformadas. No universo do minifúndio, e da pobreza digna, não há espaço para desperdício. Do porco, se aproveita tudo. Menos o berro, como diz a anedota." (pág. 43).
"Dia de Matar Porco" é um livro muito bom, para ser lido em uma só pegada. Tenho certeza que muitos leitores se identificarão com diversas passagens, especialmente com as dificuldades da vida interiorana, justificando o êxodo rural e a super povoação dos centros urbanos. Vale a leitura!
__________________
CRISTIAN LUIS HRUSCHKA, responsável pelo site www.resenhas-literarias.blogspot.com.br. É autor do livro "Na Linha da Loucura", publicado em 2014 pela editora Minarete/Legere (www.facebook.com.br/nalinhadaloucura). E-mail: clhadv@hotmail.com
Comentários
Postar um comentário