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"K.", Bernardo Kucinski

MEMÓRIAS AFLITIVAS
Cristian Luis Hruschka

KUCINSKI, Bernardo. K. - Relato de uma busca, São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2014, 192 pág.

Como administrar a dor da perda? É possível conviver com a ausência de uma pessoa querida? O sentimento de vazio está ligado de forma umbilical com a sensação de impotência trazida pelo desaparecimento repentino da filha de K., protagonista principal do livro de Bernardo Kucinski, agora reeditado pela Cosac Naify e que fora finalista do Prêmio Portugal Telecom e São Paulo de Literatura de 2012, quando publicado pelo selo Expressão Popular.

A trama se passa durante o regime militar no Brasil, período negro da recente história nacional, com feridas que permanecem abertas até os dias atuais. A personagem principal não tem nome, apenas é chamado de "K.", fazendo-nos evocar Joseph K., personagem do escritor tcheco Franz Kafka no livro "O Processo", que é preso, julgado e condenado por um crime não revelado. O texto relata a busca de um pai (polonês, judeu, dedicado escritor e cultivador da língua iídiche) à sua filha, professora de química da Universidade de São Paulo.

Durante a busca, K. passa a observar que conhece muito pouco da filha desaparecida, seus hábitos e detalhes da vida íntima. A militância política e até mesmo o fato dela ser casada (o marido também desaparece) é uma surpresa para ele. Detalhes importantes que não deveriam passar despercebidos pelo pai são descortinados durante a incansável busca para saber se a filha foi morta pela repressão, está presa ou saiu do País. Os códigos de família, aqui lembrando Zélia Gatai, não existem e até mesmo fotografias encontradas depois do desaparecimento são fragmentos de uma vida que ele desconhecia: 

"K. perturba-se por não encontrar fotografias dele com a filha, embora ela fosse sua favorita, e ele a levasse todos os dias ao colégio e a mimasse, como uma princesa. Deu-se conta de que nunca montara um álbum de fotografias da filha. Todas as famílias compilavam álbuns assim, menos a sua" (pág. 117).

Informações desencontradas, mentiras, tentativas de confundi-lo para que desista da busca são constantes. A aflição por não saber o paradeiro da filha e a incerteza de sua morte rondam toda a procura. A dor de não ter um corpo para enterrar é latente e exasperante, sequer permitindo que seja realizado o Matzeivá, onde K. solicitou ao rabino que fosse colocada uma lápide para a filha ao lado do túmulo da mãe um ano após a morte. O rabino, considerado moderno e menos ortodoxo, porém, recusa o pedido: "O que você está pedindo é um absurdo, colocar uma lápide sem que exista o corpo..." (pág. 77).

Por meio de capítulos bem construídos e com títulos que poderiam dar nome ao livro, Kucinski relata eventos do período repressivo em linguagem clara, de forma muito inteligente. O capítulo "A Terapia" é preciso ao descrever a consulta fictícia envolvendo uma faxineira da "Casa da Morte", que não sabia ao certo onde trabalhava, e uma psicóloga, citando personagens cruciais do regime militar como o temido delegado Fleury. "Os presos eram levados para lá, sempre um de cada vez, e nunca mais eu via eles. Lá em cima eu via pela janela eles serem levados para dentro da tal garagem, nunca vi nenhum deles sair. Nunca vi nenhum preso sair. Nunca." (pág. 131), dizia Jesuína, a faxineira que não conseguia dormir em virtude das alucinações: "Vi uns ganchos [na garagem] de pendurar carne igual nos açougues, vi uma mesa grande e facas igual de açougueiro, serrotes, martelo. É com isso que tenho pesadelos, vejo esse buraco, pedaços de gente. Braços, pernas cortadas. Sangue, muito sangue" (pág. 132).

Conforme relata Renato Lessa no posfácio do livro, a história é baseada no desaparecimento de Ana Rosa Kucinski, irmã do autor, e do marido dela, Wilson Silva. Os dois estão desparecidos até hoje, mesmo com documentos que comprovam a prisão do casal pelo DOPS. Ana Rosa, assim como a filha de K., também era professora universitária, fato que atribui tremenda verosimilhança à ficção no capítulo "A Reunião da Congregação", quando a USP, ao invés de utilizar seu prestígio e exigir das autoridades resposta ao sumiço de uma professora de alta graduação, cujo nome figura numa relação publicada pelo jornal Folha de São Paulo como desaparecida durante o regime militar, opta por rescindir o contrato sob a justificativa ridícula de abandono de emprego. Talvez seja essa a justificativa para o aviso de Kucinski ao leitor na epígrafe do livro: "Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu".

K. - Relato de uma busca é o romance de estreia de Bernardo Kucinski, tendo também publicado pela Cosac Naify o livro Você vai voltar para mim e outros contos, com a mesma temática. Leitura obrigatória para lembramos de um período que não pode cair no esquecimento dos mais jovens.

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CRISTIAN LUIS HRUSCHKA, responsável pelo site www.resenhas-literarias.blogspot.com.br. É autor do livro "Na Linha da Loucura", publicado em 2014 pela editora Minarete/Legere (www.facebook.com.br/nalinhadaloucura). E-mail: clhadv@hotmail.com

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