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"Noite", Érico Veríssimo

OS INTEGRANTES DA VIDA NOTURNA

Cristian Luis Hruschka

 

Veríssimo, Érico. Noite, Rio de Janeiro: Globo, 210 pág.

 

Nascido em Cruz Alta (RS) no dia 17 de dezembro de 1905, Érico Veríssimo faleceu na capital gaúcha em 28 de novembro de 1975, aos 69 anos, após intensa vida literária. Foi escritor, tradutor, e por diversos períodos trabalhou nos Estados Unidos como professor e palestrante. Seus livros mais famosos são Olhai os Lírios do Campo (1938), a trilogia O Tempo e o Vento, composto de O Continente (1949), O Retrato (1951) e O Arquipélago (1962), e Incidente em Antares (1971).


Seus leitores estão familiarizados com a seriedade dos temas abordados, mesmo quando flerta com o realismo fantástico (em Incidente em Antares os cadáveres se rebelam contra a greve dos coveiros). Seus personagens também são apaixonantes, como Ana Terra, Bibiana e o famoso Capitão Rodrigo.


A novela Noite (1954), porém, não guarda semelhança com as demais obras do grande escritor de Música ao Longe (1936) e O Senhor Embaixador (1965).


A trama tem como protagonista um sujeito apenas identificado como “Desconhecido”, que acorda no início de uma noite em um lugar obscuro de uma grande cidade, com roupas estranhas e muito dinheiro na carteira. Não sabe como foi parar ali, tampouco recorda do que aconteceu recentemente.


Vagando pelo local vai parar em um estabelecimento onde é abordado por um anão que recebe a alcunha de “Corcunda”, cidadão que lhe causa repugnância. O homúnculo, porém, com sua conversa envolvente e após descobrir que o Desconhecido está com a burra cheia, lhe apresenta um terceiro personagem chamado por ele de “Mestre”, também identificado no livro como “O Homem do Cravo Vermelho”, que assim diz:


“- Eis que um homem moço, bem-apessoado e bem vestido é encontrado sozinho num café suspeito da zona do cais, o olhar resvairado de quem está sendo perseguido. Dois cavalheiros de boa vontade sentam-se à sua mesa, oferecem-lhe sua amizade, querem ajuda-lo no transe difícil e eis que a misteriosa personagem se nega a revelar a sua identidade, alegando que não lembra de nada. No bolso, tem uma carteira recheada... e ninguém normalmente carrega consigo tanto dinheiro.” (pág. 49, sic).


Pelo trecho acima já se percebe que a trama é envolta em mistério, afinal, o Desconhecido não sabe quem é, de onde veio, para onde vai e tampouco de onde apareceu o dinheiro na sua carteira. A situação, porém, tende a piorar.


As duas “aves noturnas”, após se chegarem ao Desconhecido, resolvem lhe apresentar a "beleza" da noite, vagando por ruas com prostitutas e levando-o a um velório, uma quermesse e um prostíbulo reservado à grandes figurões, onde o Mestre, muito envolvido na alta roda, tem horário marcado para intermediar o encontro entre uma jovem mulher e um comendador.


Lógico que os dois integrantes da vida noturna estão acostumados à vida marginal, transitando com fluidez em todos os locais. São, na verdade, duas raposas que encontram no Desconhecido a pessoa ideal para gozar da boa vida à custa do dinheiro que este tem na carteira.


A noite vai se desenrolando e, em determinado momento, o trio para em um Pronto Socorro, onde é confirmado que no dia anterior houve o assassinato cruel de uma mulher, cujo culpado está desaparecido. O Desconhecido, tendo a roupa manchada de sangue, de imediato passa a carregar uma culpa que não tem certeza se existe, afinal, não sabe onde esteve e nem como foi parar naquelas condições.


Incrivelmente ele continua seguindo o Mestre e o Corcunda pela cidade, aportando em uma boate onde conhece duas prostitutas chamadas “Passarinho” e “Ruiva”. A bebida corre solta e o Desconhecido desmaia, sendo arrastado até a casa da Ruiva onde acorda após uma noite agitada. Ao levantar o apagão parece ter passado. Lembra da infância e de ter discutido com sua mulher de forma agressiva. Recorda, também, que impôs à bela esposa uma grande humilhação. Corre para sua residência na expectativa de revê-la e, ao chegar... leia o livro para tirar suas conclusões.


Como se percebe, o enredo enigmático não guarda ligação com os demais livros de Érico Veríssimo, porém, é incrivelmente bem escrito e deixa o leitor instigado, curioso, após a leitura de cada página.


A culpa que o Desconhecido carrega, a confusão em sua mente, os lapsos de memória, a impossibilidade de se livrar dos dois “parceiros” da noite, a reflexão sobre a condição humana que aflige o personagem, tornam a leitura veloz do início ao fim.


Noite foi escrito quando Veríssimo estava trabalhando no último volume de O Tempo e o Vento, talvez para retirá-lo da imersão dos pampas gaúchos, visto que nenhuma ligação tem com o romance épico. Parece que o livro serviu como uma válvula de escape para o escritor, permitindo-o, na sequência, retomar sua obra-prima.


A edição que li encontrei na biblioteca do meu sogro. É de 1954, primeira edição, contudo, outras mais recentes podem aparecer em sebos e livrarias. O livro foi cobrado em diversas listas de vestibular e adaptado para o cinema em 1985 tendo no elenco Paulo Cesar Pereio, Otávio Augusto e Nelson Dantas. Recebeu o prêmio especial do júri no Festival de Gramado.


Cristian Luis Hruschka é advogado e professor. Autor do livro "Na Linha da Loucura", Ed. Legere, 2014.  

Comentários

  1. Esse livro do Érico Veríssimo parece ser muito interessante. Muita vontade de ler. Percebo que as estruturações das cidades acabaram influenciando muitos escritores e o interessante é que a personagem ambiental (se é que podemos classificar assim) acaba deixando as personagens humanas diante de sua desorientação sobre quem é realmente. Isso pode ocorrer por causa do isolamento que o ambiente urbano fortifica em seus cidadãos. Isolado de outras pessoas, mais diante de si fica o indivíduo. Sem as máscaras a grande dúvida surge: quem sou eu?

    Grato pela resenha.

    André Moreno

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    1. Olá, André! Grato pelo seu comentário e interação. É sempre legal ter o retorno dos leitores do blog. Abraços!

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