Pular para o conteúdo principal

"Ontem à Noite era Sexta-feira", Roberto Drummond

PASSEIO POR BH
Cristian Luis Hruschka

DRUMMOND, Roberto. Ontem à noite era sexta-feira, 4a. ed., Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1988, 210 p.

O teólogo holandês Erasmo de Roterdã disse: "quando tenho algum dinheiro, compro livros. Se ainda me sobrar algum, compro roupas e comida". Nos dias atuais essa expressão pode ser quase levada ao pé da letra quando visitamos os diversos sebos que existem pelo Brasil. Neles é possível garimpar livros muito interessantes e há tempo fora de catálogo. Bom frequentador desses locais, perdendo horas vasculhando as estantes, ao trocar créditos recebidos em um sebo por outros livros, encontrei "Ontem à noite era sexta-feira", de Roberto Drummond.

Ler Drummond é sempre uma satisfação. Na linha dos bons escritores mineiros, tal como Fernando Sabino e Oswaldo França Júnior, possui uma escrita rápida, simples e profunda, qualidades literárias somente alcançadas com muito esforço. Sabino, em sua famosa entrevista ao programa Roda Viva (1989), disse,  não me recordo se essas foram suas palavras exatas - que "dá um trabalho danado escrever de forma simples". Nada mais acertado!

Em Ontem à noite era sexta-feira, o escritor transporta o leitor para uma Belo Horizonte moderna e movimentada. Para quem conhece a cidade, o livro é um verdadeiro passeio por suas ruas e lugares pitorescos. O ritmo do enredo prende o leitor desde o início. O personagem principal, narrador que conta para um corpo de jurados a  história envolvendo o Crime do Pierrot, inicia seu discurso relatando a difícil vida da família no Vale do Rio Doce, região repleta de matadores, entre eles Abresalão, assassino conhecido cuja morte lhe foi confiada. Após sua chegada em Belo Horizonte, treinando diariamente sua pontaria e morando num apartamento em Mangabeiras, o narrador conta seu envolvimento com Narcisa e Rovena, gêmeas simetricamente idênticas, cujos segredos e diferenças somente Deus e o diabo conhecem. O narrador também possui um irmão gêmeo, sendo o tema muito bem explorado por Drummond durante toda a narrativa. Mesmo após a morte do irmão, ele aparece ao protagonista principal para cobrar satisfações com relação às irmãs gêmeas que eram cobiçadas por ambos e que somente um poderia gozar dos prazeres em vida.

Passagens metafísicas (como a aparição do irmão morto) se misturam à realidade e tornam o livro um verdadeiro convite à leitura. Sendo um dos grandes expoentes da chamada "literatura pop" - termo questionado pelos críticos - , abordando temas urbanos, Drummond usa e abusa da cidade de Belo Horizonte, apresentando passagens memoráveis como:

"- Acabou? - perguntei a Narcisa.
- Não - ela respondeu.
- E o que vem agora? - insisti.
- O Tobogã - ela respondeu.

Ela estava falando sobre o que todos conheciam como Tobogã, ou seja, o declive na Avenida do Contorno, próximo à esquina da Rua Piauí, e que, durante o dia, era a delícia das crianças, cujos pais aceleravam um pouco o carro, que imitava o movimento de um tobogã; mas nas noites de Belo Horizonte, aquela brincadeira ingênua transformava-se numa aventura perigosa, que já havia custado várias vidas de ases do volante e de motoqueiros, merecendo editoriais do Estado de Minas e inflamados discursos na Assembléia Legislativa, com deputados condenando a vocação suicida dos jovens belorizontinos. Eu próprio, tendo Simone ao lado, fiz muitas vezes o Tobogã, mas não passava dos 100. E agora: o que nos esperava, com Narcisa querendo ser Nélson Piquet e Rovena querendo ser Airton Senna?"
 (pág. 130).

Outra questão abordada no texto é a falta de mar em Belo Horizonte. Esse tema é corriqueiro na cidade e muitos atribuem, sarcasticamente, culpa à religiosidade fervorosa dos próprios mineiros que, no final do Pai Nosso, rezam "... mas livrai-nos do 'mar'". Brincadeiras à parte, como disse Mersault, não aquele o livro de Camus (O Estrangeiro), mas a personagem de Drummond: "Se Belo Horizonte tivesse mar, aqui seria o paraíso!" (pág. 85).

Voltando a Erasmo de Roterdã e sua frase sobre livros, paguei R$ 4,00 (quatro reais) por "Ontem à noite foi sexta-feira" em um sebo. Nada que impeça de ter dinheiro para comer ou me vestir. Quanto ao alimento para a alma, fica a certeza de que devemos ter sempre por perto um livro de Roberto Drummond. Pena que nos deixou tão cedo.

__________________

CRISTIAN LUIS HRUSCHKA, responsável pelo site www.resenhas-literarias.blogspot.com.br. É autor do livro "Na Linha da Loucura", publicado em 2014 pela editora Minarete/Legere (www.facebook.com.br/nalinhadaloucura). E-mail: clhadv@hotmail.com

Comentários

Postar um comentário

Outras postagens ✓

"Onde os velhos não têm vez", Cormac McCarthy

SANGUE E VIOLÊNCIA NA FRONTEIRA Cristian Luis Hruschka   McCARTHY, Cormac. Onde os velhos não têm vez , 2ª ed., Rio de Janeiro: Alfaguara, 2023, 229 páginas (Tradução: Adriana Lisboa).   Visceral! Lançado em 2005, o romance “Onde os velhos não têm vez”, de Cormac McCarthy, é violento, direto e sensacional. Falecido em junho de 2023, McCarthy é considerado um dos maiores escritores norte-americanos dos últimos tempos. Ficou conhecido por romances com alto grau de violência e economia de detalhes. O livro “Onde os velhos não têm vez”, reeditado pela Ed. Alfaguara, é prova disso. Ambientado no Texas, na divisa com o México, a trama avança com velocidade, narrando a fuga de Llwelyn Moss (veterano do Vietnã) do “carniceiro” Anton Chigurh, o qual, por sua vez, é perseguido pelo xerife Ed Tom Bell, já com certa idade e desanimado com o aumento da violência na região. Tudo começa quando Moss, durante uma caçada na região árida próxima ao México, se depara com o resul...

"O Mundo de Platão", Neel Burton

O FILÓSOFO ESCRITO   BURTON, Neel. O Mundo de Platão, Ed. Cultrix, 2013, 231 páginas. Tradução de Mario Molina. Muito já se escreveu sobre o filósofo grego Platão, porém, poucas obras reúnem de forma concisa e clara seus diálogos e apresentam um panorama do ambiente em que ele viveu há mais de 20 séculos. O livro escrito pelo inglês Neel Burton apresenta uma proposta diferenciada, abordando a história de Atenas até a elaboração dos famosos diálogos de Platão. Nessa trajetória consegue integrar o leitor ao ambiente da época, familiarizando-o com palavras e expressões muito utilizadas mas pouco compreendidas pelo grande público. De forma suscita, porém objetiva, explica questões pontuais da história como o surgimento da “Cidade-Estado”, as guerras persas com o famoso Leônidas e seus trezentos heróis espartanos, e as guerras do Peloponeso, que resultou no controle de Atenas, rendida, por Esparta. Além do contexto histórico, Burton apresenta os filósofos mais importantes da ép...

"Mossad - Os Carrascos do Kidon", Eric Frattini

EM NOME DE ISRAEL Cristian Luis Hruschka FRATTINI, Eric. Mossad os carrascos do Kidon: a história do temível grupo de operações especiais de Israel. 1a. Ed., São Paulo: Ed. Seoman, 392 pág. Referenciado por uns e considerado por outros como sendo um grupo terrorista de Israel, o Mossad consiste no mais avançado e treinado serviço de investigação israelense. Criado em 1951, teve como proposta inicial vingar os judeus mortos durante a Segunda Guerra Mundial, aproximadamente seis milhões, e combater os inimigos de Israel em todo e qualquer lugar do planeta. O "Kidon", por sua vez, é a unidade "secreta"do Mossad, este vinculado ao Metsada, responsável pelas operações especiais de Israel. Sua norma básica de atuação é: "Não haverá matança de líderes políticos; estes devem ser tratados através dos meios políticos. Não se matará a família dos terroristas; se seus membros se puserem no caminho, não será problema nosso. Cada execução tem de ser autoriza...

"O Caminho do Peregrino", Laurentino Gomes e Osmar Ludovico

VISITA À TERRA SANTA Cristian Luis Hruschka GOMES, Laurentino; LUDOVICO, Osmar. O Caminho do Peregrino: seguindo os passos de Jesus na Terra Santa , 1ª ed., São Paulo: Globo, 2015, 198 páginas (Ilustrações: Cláudio Pastro).   Imagine-se em uma praia, à frente de um pequeno barco e com a rede vazia de peixes. Uma pessoa se aproxima e diz para você entrar no mar e lançar novamente a rede que muitos peixes virão e que a partir daquele momento você não deve mais pescar peixes, mas sim homens! Essa pessoa também se intitula filho de Deus, tendo nascido de uma virgem. Você largaria tudo para segui-lo? Nos dias atuais, com recursos tecnológicos à palma da mão, dificilmente você acreditaria em alguém com esse discurso, porém, há dois mil anos, Jesus Cristo se mostrou para a humanidade e cativou seguidores com sua simplicidade, amor e palavras de esperança. O mundo depois Dele nunca mais foi o mesmo. Em um livro curto, Laurentino Gomes, mais conhecido por "1808" e "1822...

"O Útimo Homem Branco", Mohsin Hamid

PROMETE MAS NÃO ENTREGA Cristian Luis Hruschka   HAMID, Mohsin. O Último Homem Branco , São Paulo: Companhia das Letras, 2023, 134 páginas (Tradução: José Geraldo Couto).   Lançado em 2022, o livro de Mohsin Hamid foi recebido como um sucesso de crítica. Nascido no Paquistão, o escritor já viveu na Califórnia, Nova Iorque e Londres, sendo colaborador de jornais como The New York Times e Washington Post. O livro conta a história de Anders, um homem branco que, em certa manhã, ao acordar, “descobriu que tinha adquirido uma profunda e inegável tonalidade marron”. A temática proposta é muito inteligente e gera controvérsias das mais variadas, principalmente quanto à intolerância racial. Escrito de maneira arrastada, o livro não prende o leitor e, na minha singela opinião, assim segue até o final. A ideia de abordar uma questão tão importante, com grande clamor social e por muitos tida como apavorante por colocar em xeque a “supremacia do homem branco”, que estaria ...

"Depois do Último Trem", Josué Guimarães

LITERATURA RECOMENDADA Cristian Luis Hruschka GUIMARÃES, Josué. Depois do Último Trem, 2a. ed., Porto Alegre: Ed. L & PM, 1979, 141 pág. O Estado do Rio Grande do Sul sempre apresentou ótimos escritores. Érico Veríssimo na prosa e Mário Quintana na poesia, com certeza os maiores representantes. Outros estão meio esquecidos, mas suas obras não podem ser deixadas de lado. Josué Guimarães é um deles. Nascido na cidade de São Jerônimo (RS), teve uma vida movimentada. Trabalhou em diversos jornais de âmbito nacional, sendo perseguido durante o regime militar, quando esteve na clandestinidade escrevendo por meio de pseudônimos. Falecido em 1986, deixou um grande número de obras, adultas e infantis. Seus livros de maior expressão são "Enquanto a noite não chega", reconhecido pela crítica como obra máxima, "Dona Anja", "Tambores Silenciosos" e "Camilo Mortágua". Lembrei de seu nome quando estava lendo o artigo do Alberto Mussa no suplemento ...

"O Espião que Saiu do Frio", John le Carré

O REI DA ESPIONAGEM Cristian Luis Hruschka LE CARRÉ, John. O Espião que Saiu do Frio, 8a. Ed., Rio de Janeiro: Ed. Record, 2013, 237 páginas. Tradução: Adelino dos Santos Rodrigues. Britânico, nascido em 1931, John le Carré é um dos maiores escritores do gênero de espionagem. Seu primeiro livro (O Morto ao Telefone) foi lançado em 1961, quase duas décadas após o término da segunda guerra mundial. Integrante do corpo diplomático da Inglaterra, Le Carré trabalhou por muitos anos na Alemanha, em plena guerra fria, sendo boa parte de seus romances ambientados nessa época.  O Espião que Saiu do Frio  é de 1963, quando livros de espionagem faziam muito sucesso impulsionados pelo conhecido James Bond, de Ian Flemming. O agente de Le Carré, porém, é bastante diferente do 007. Muito mais introspectivo e reservado, sem fazer uso de armas espalhafatosas e fantasiosas, o personagem Alec Leamas foi criado com muita técnica e perfeição. Seus diálogos são milimetricamente ...

"Uma Mulher Transparente", Edgard Telles Ribeiro

LEITURA DIÁFANA Cristian Luis Hruschka RIBEIRO, Telles Edgard. Uma Mulher Transparente. São Paulo: Ed. Todavia, 2018, 128 páginas. Autor de mais de uma dezena de livros, Edgar Telles Ribeiro é escritor premiado e com romances traduzidos para diversos países. Diplomata, assim como o pai, nasceu em 1944 e viveu os chamados "anos de chumbo", período conturbado da história brasileira. Seu último livro, "Uma Mulher Transparente", situa a trama durante o regime militar, iniciando alguns anos antes de instaurado o golpe quando o narrador, que escreve verbetes para uma enciclopédia, testemunha um assassinato ocorrido na calçada em frente ao prédio onde trabalha. Anos depois este narrador inicia seu segundo livro onde pretende abordar a morte misteriosa, sob sua ótica, da esposa o antigo chefe (Herculano). No velório deste, encontra um colega de trabalho, dos tempos da enciclopédia, e relata seu novo projeto literário. O amigo, que era muito próximo ao chefe falec...

"O Alienista", Machado de Assis

O ALIENISTA EM QUADRINHOS Cristian Luis Hruschka O ALIENISTA, Machado de Assis, adaptado por César Lobo (arte) e Luiz Antonio Aguiar (roteiro), São Paulo: Ática, 2008, 72 pág. (Clássicos Brasileiros em HQ). “A loucura, objeto de meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”. (Machado de Assis, “O Alienista”). O ano que passou foi considerado o “Ano de Machado de Assis”, homenagem ao escritor brasileiro por força do centenário de sua morte ocorrida em 29 de setembro de 1908. À guisa de diversas homenagens, muito se falou e comentou à respeito, inclusive no segmento das histórias em quadrinhos. Nessa senda, o trabalho realizado por César Lobo e Luiz Antonio Aguiar, este profundo conhecedor da obra do Bruxo do Cosme Velho (tendo publicado em 2008 o “Almanaque Machado de Assis” – Ed. Record), merece destaque. Em exemplar primoroso, os autores adaptaram a novela “O Alienista”, um dos melhores trabalhos...

"1989: O Ano que Mudou o Mundo", Michael Meyer

RAZÕES PARA A QUEDA DA EUROPA COMUNISTA MEYER, Michael, 1989: O ANO QUE MUDOU O MUNDO: a verdadeira história da queda do muro de Berlim, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, 247 pág., tradução de Pedro Maia Soares. No final de 2011 estive com minha esposa, Patrícia, em Berlim, capital da Alemanha. Ficamos na parte oriental, anteriormente ocupada pelos soviéticos e que ainda guarda muitas lembranças daquele período. Essa proximidade com a história me despertou o interesse, já aguçado, de conhecer as razões e motivos da queda do comunismo na Europa Oriental. Com o término da Segunda Guerra Mundial a cidade de Berlim estava praticamente destruída. Prédios históricos, igrejas e monumentos devastados, existindo até hoje marcas desse conflito que tanto chocou o mundo. A queda do Reich, por sua vez, causou a divisão da capital alemã, sendo que a metade oriental ficou com os soviéticos, que haviam devastado Berlim vindo de Moscou, e a outra metade (ocidental) foi dividida entre os paí...