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"A Morte e a Morte de Quincas Berro D'água", Jorge Amado


JORGE AMADO E A MORTE DE QUINCAS BERRO D’ÁGUA
Cristian Luis Hruschka

A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO D’ÁGUA, Jorge Amado, São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2008, 112 pág.


Nesse ano a Companhia das Letras iniciou a republicação das obras completas de Jorge Amado (1912-2001), sendo que os últimos livros serão reeditados em 2012, ano da comemoração do seu centenário de nascimento.

Jorge Amado nos deixou vasta e rica obra. São seus livros como “Tieta do Agreste”, “Terras do sem-fim”, “Dona Flor e seus Dois Maridos”, “Mar Morto”, “Capitães de Areia” e “Tocaia Grande”, apenas para citar alguns.

Advogado, porém sem nunca ter exercido a profissão, era “comunista de carteirinha’. Preso e exilado em diversas oportunidades, na década de 40 foi deputado federal pelo PCB, afastando-se da militância política por volta de 1955. Viveu na França e na Tchecoslováquia, ocasião em que estreitou seus laços comunistas com a Europa, em especial a União Soviética. Seu lar, no entanto, foi a famosa casa do Rio Vermelho, Salvador, Bahia, Brasil, comprada com a venda dos direitos de filmagem de “Gabriela, Cravo e Canela” aos estúdios da MGM. Era lá que recebia amigos e personalidades, entre elas Sartre e Pablo Neruda, que se tornou compadre de Jorge Amado.

Em 1998 torna-se doutor “honoris causa” da Universidade de Sorbonne Nouvelle e Universidade Moderna de Lisboa, sendo agraciado, ainda, com o prêmio Camões, maior honraria para escritores de língua portuguesa. Morre em 2001 após problemas de saúde que o acompanhavam desde a última metade da década de 90, impulsionados por um enfarte, perda da visão central e um edema pulmonar detectado em Paris. Com ele se foi a maior e mais real oportunidade do Brasil receber um prêmio Nobel de Literatura. Dificilmente a qualidade de sua obra, traduzida para o mundo todo, terá representante de tamanha importância.

Entre as personagens criadas por ele, merece destaque Quincas Berro D’água. A novela escrita por Jorge Amado é deliciosa e merece ser lida em um único fôlego.

O livro narra os acontecimentos que sucedem após ser encontrado o corpo de Quincas em uma pocilga, deitado sobre um catre, mal vestido, com o dedão do pé escapando por um buraco na meia furada e… sorrindo, um “sorriso cínico, imoral, de quem se divertia”. Vanda, filha, Leonardo, genro, Tio Eduardo e Tia Marocas, irmãos, ao mesmo tempo que se apresentam enlutados davam graças pelo ocorrido. Finalmente morria a vergonha da família.

Para os parentes o falecido deveria permanecer para sempre como o irrepreensível cidadão Joaquim Soares da Cunha, não o famoso Quincas Berro D’água, o “Rei dos vagabundos da Bahia”, o “senador das gafieiras”, o “patriarca da zona do baixo meretrício”, personagem que se tornou após sair de casa chamando mulher e filha de “jararacas”.

Vanda não entendia como um respeitado funcionário da Mesa de Rendas Estadual podia abandonar, aos cinqüenta anos, a família, o lar, os hábitos de toda uma vida, “para vagabundear pelas ruas, beber em botequins baratos freqüentar o meretrício, viver sujo e barbado, …”.

No entanto, a morte de Quincas foi sentida pelos seus pares. A notícia se propagou e nos bares, botequins e armazéns, “imperou a tristeza e a consumação era por conta da perda irreparável”. Afinal, “quem sabia melhor beber do que ele, jamais completamente alterado, tanto mais lúcido e brilhante quanto mais aguardente emborcava? Capaz como ninguém de adivinhar a marca, a procedência das pingas mais diversas, conhecendo-lhes todas as nuanças de cor, de gosto e de perfume”. Todos que lhe queriam bem, mulheres baratas, vagabundos, malandros, marinheiros desembarcados, derramaram lágrimas pela perda.

No velório não poderiam deixar de faltar os amigos, em especial os inseparáveis Curió, Cabo Martim, Pé-de-Vento e Negro Pastinha, este que o chamava de “paizinho”. Já chegaram úmidos de cachaça e se colocaram a disposição para auxiliar a família no que fosse preciso. Aos poucos Vanda, Leonardo e Tia Marocas foram saindo, sendo que Tio Eduardo deixou ao encargo dos amigos de Quincas a responsabilidade de cuidarem do defunto. Nesse ponto o livro torna-se ainda mais delicioso e hilário. Os amigos dão bebida para o morto, trocam suas roupas (apoderando-se do terno novo, sapatos e camisa, comprados pela família para honrar o falecido), e levam o corpo para comer moqueca. Caminham com ele pelas ruas e lá pelas tantas, após empinarem muita cachaça, passam a comemorar o “aniversário” do velho amigo Quincas Berro D’água. Até Quitéria Olho Grande, amante do “de cujus”, fica surpresa ao vê-lo amparado pelos amigos. A peixada foi servida à bordo de um Saveiro, embarcação típica do nordeste brasileiro, e durante forte temporal uma onda grande arremessou o corpo de Quincas ao mar. Nunca mais se viu. Ficou na tempestade “envolto num lençol de ondas e espuma, por sua própria vontade”.

O livro “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’água” teve sua primeira publicação em 1961. Relançada pela Cia. das Letras em edição bem cuidada, acompanha posfácio, escrito por Affonso Romano de Sant’Anna, cronologia, reprodução das páginas iniciais do original de Jorge Amado, fotografias, ilustrações e capa do livro em edição libanesa, americana, chinesa, finlandesa, israelense, francesa, portuguesa, lituana e grega. Garantia de boa leitura!

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CRISTIAN LUIS HRUSCHKA, responsável pelo site www.resenhas-literarias.blogspot.com.br. É autor do livro "Na Linha da Loucura", publicado em 2014 pela editora Minarete/Legere (www.facebook.com.br/nalinhadaloucura). E-mail: clhadv@hotmail.com

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