Pular para o conteúdo principal

"Hans Staden - Viagens e Aventuras no Brasil", Luiz Antônio Aguiar


UM ALEMÃO ENTRE OS CANIBAIS
Cristian Luis Hruschka

HANS STADEN – VIAGENS E AVENTURAS NO BRASIL, Luiz Antônio Aguiar, Ed. Melhoramentos, 2ª. ed., 1992, 110 p.


Imagine estar no meio da mata, cercado de índios, prestes a ser esquartejado e devorado por gente tão humana quanto você. Seus braços e pernas seriam cortados, as costas separadas do peito e as vísceras entregues às índias a fim de que as fervessem e servissem para as crianças em forma de papinha. Pois foi nesse meio que o nosso herói Hans Staden se encontrava.

O livro escrito por Luiz Antônio Aguiar, mestre em literatura brasileira pela PUC/RJ com mais de 60 títulos publicados, é uma adaptação da obra de Staden, originalmente publicada na cidade de Marburgo, Alemanha, em 1557. Narra as aventuras e sufocos passados pelo alemão ao ser apanhado pela tribo dos índios tupinambás, cujo cativeiro, no ano de 1552, durou nove meses.

O Brasil acabava de ser descoberto e por nossas terras, além dos legítimos donos, os próprios índios, circulavam, entre outros, espanhóis, franceses e portugueses. As chamadas capitanias eram constantemente invadidas por tribos indígenas, as quais guerreavam também entre si e costumavam se aliar aos colonizadores e combater seus desafetos. A coroa portuguesa, por exemplo, era atacada pelos tupinambás, aliados aos franceses, e eram inimigos mortais dos tupiniquins, apoiados pelos portugueses. Fato é, no entanto, que essas tribos indígenas eram antropófagas, comiam gente.

Independente à isso, o alemão Hans Staden foi incumbido por Tomé de Souza (primeiro Governador-Geral do Brasil), para fortificar a ilha de Santo Amaro. Staden sabia do risco que corria e tinha um medo especial do guerreiro tupinambá “Cunhambebe”, famoso pela ousadia de seus ataques, violência e apurado gosto por carne humana. Era esse o nome do pior de seus pesadelos.

Porém, o inevitável aconteceu, sendo Hans Staden capturado pelos famigerados tupinambás. Contudo, ao invés de ser prontamente apreciado, por ser loiro e de pele clara (diferente dos portugueses que tinham cabelo e barbas pretas), o alemão foi levado até a aldeia para que fosse mostrado às crianças, velhos e mulheres. No caminho já era mordiscado pelos índios, como se estivessem saboreando sua carne, verificando o tempero, e ao chegar na aldeia foi obrigado a gritar: “Aju ne xé peê remiura”, ou seja: - Eu, seu alimento, está chegando.

Claro que não chegou a ser devorado, pois nos conta posteriormente a sua história. É nesse relato que está a riqueza de sua experiência. Hans Staden, além da ginástica que teve que fazer para escapar do caldeirão, aprendeu os costumes dos índios, observou seus ritos, suas crenças, medos e superstições, seus hábitos e rotinas. Para a sociedade indígena não havia lei ou governo. Todos tinham a mesma autoridade e direitos, sendo o mais respeitado aquele com maiores glórias de guerra. Não havia propriedade particular, apenas a natureza, que pertencia a todos. O alimento vinha da caça, pesca e colheita (e de alguns incautos inimigos). Os mais velhos eram sempre obedecidos, as mulheres tratadas com muito apreço (e trabalhavam mais que os homens: preparação de comida, bebida, vasilhames, redes, cuidados com os filhos, plantação, tecelagem, etc). Foram raras as brigas testemunhadas por Hans Staden. Não havia dinheiro ou riqueza acumulada, exceto as penas de pássaros e os cristais que utilizavam nos lábios, sendo que temiam os trovões tanto quanto os demônios que julgavam existir. Os índios defendiam com unhas e dentes sua aldeia ao mesmo tempo sendo muito hospitaleiros, essa uma forte razão pela qual foram tão facilmente dominados pelo invasor branco. Eram fortes, corajosos e ágeis, destacando Luiz Aguiar que “caminhavam na mata como se ela fosse a sua casa. Conheciam todas as plantas e animais. Tinham corpo elástico, saudável, manejavam armas e instrumentos com uma habilidade difícil de ser concebida pelo homem branco.”

Os índios viviam em constante equilíbrio com a natureza, não retirando dela nada além do que precisavam. Instalavam suas tabas em regiões de água abundante, de muita pesca e caça. Staden ainda reparou que para os índios era indecente falar durante as refeições, mas que não se aborreciam se faltava comida. Tinham erva (pitim), e fumavam para afastar a fome. Em geral as diversas tribos tinham os mesmos hábitos e Hans Staden compreendia bem o que falavam, comunicando-se com facilidade.

Reparou ainda que os índios não praticavam nenhuma forma de poder sobre seus semelhantes. Nas incursões guerreiras faziam prisioneiros apenas para devorá-los, vingarem seus parentes e amigos mortos, mas não os transformavam em escravos afinal viviam em uma sociedade onde não se acumulavam riquezas, onde cada um produzia o que era seu, dentro das suas possibilidades e necessidades. Já os brancos, europeus, queriam a terra, a madeira, e não visualizavam nos índios a existência de uma cultura, taxando-os como bárbaros e selvagens, totalmente avessos aos dogmas cristãos.

Toda essa narrativa de Hans Staden é deliciosamente adaptada por Luiz Aguiar. A linguagem utilizada é convidativa e o livro permeado de suspense e ironia, sendo uma agradável leitura para adultos e crianças.

Vou destacar, ainda, que comprei esse livro em um sebo: gastei R$ 2,00 (dois reais). É muita informação por um preço tão baixo. Neste país só não lê quem não quer!

__________________

CRISTIAN LUIS HRUSCHKA, responsável pelo site www.resenhas-literarias.blogspot.com.br. É autor do livro "Na Linha da Loucura", publicado em 2014 pela editora Minarete/Legere (www.facebook.com.br/nalinhadaloucura). E-mail: clhadv@hotmail.com

Comentários

Outras postagens ✓

"Mossad - Os Carrascos do Kidon", Eric Frattini

EM NOME DE ISRAEL Cristian Luis Hruschka FRATTINI, Eric. Mossad os carrascos do Kidon: a história do temível grupo de operações especiais de Israel. 1a. Ed., São Paulo: Ed. Seoman, 392 pág. Referenciado por uns e considerado por outros como sendo um grupo terrorista de Israel, o Mossad consiste no mais avançado e treinado serviço de investigação israelense. Criado em 1951, teve como proposta inicial vingar os judeus mortos durante a Segunda Guerra Mundial, aproximadamente seis milhões, e combater os inimigos de Israel em todo e qualquer lugar do planeta. O "Kidon", por sua vez, é a unidade "secreta"do Mossad, este vinculado ao Metsada, responsável pelas operações especiais de Israel. Sua norma básica de atuação é: "Não haverá matança de líderes políticos; estes devem ser tratados através dos meios políticos. Não se matará a família dos terroristas; se seus membros se puserem no caminho, não será problema nosso. Cada execução tem de ser autoriza...

"O Homem Nu", Fernando Sabino

UM POUCO DE SABINO E SUA OBRA Cristian Luis Hruschka O HOMEM NU, Fernando Sabino, 38ª. ed., Rio de Janeiro: Ed. Record, 1998, 192 p. Conheci a obra de Fernando Sabino (1923-2004), em dezembro de 2006. Até então só tinha ouvido falar de seus livros sem ter me arriscado a ler algum deles. Bendita hora em que comprei “A Faca de dois Gumes” (Ed. Record, 2005), na praia, em uma banca de revistas. Foi paixão à primeira vista, ou melhor, à primeira leitura. O livro é maravilhoso, composto das novelas “O Bom Ladrão”, “Martini Seco” e “O Outro Gume da Faca”. Uma trilogia prodigiosa que leva o leitor a duvidar do certo e do errado, colocando-o no lugar dos personagens e ao mesmo tempo censurando suas atitudes. Li o livro em uma pegada. Dias após retornei à mesma banca de revistas para comprar “O Encontro Marcado”, livro mais importante da obra de Fernando Sabino, traduzido para diversos idiomas pelo mundo afora e que já ultrapassa a 80ª. edição aqui no Brasil. Não tinha mais jeito,...

"Opisanie Swiata", Veronica Stigger

UMA VIAGEM FANTÁSTICA Cristian Luis Hruschka STIGGER, Veronica. Opisanie Swiata. São Paulo, Cosac Naify, 2013, 160 pág. O livro de Veronica Stigger começa quando Natanael envia para Opalka uma carta solicitando que o venha visitar, pois, enfermo, quer conhecer seu pai antes da morte, inclusive encaminhando-lhe as passagens e dando recomendações para a viagem. Natanael, porém, vive na Amazônia e Opalka na Polônia. Essa jornada entre os continentes é relatada de forma magistral pela autora em seu novo livro, "Opisanie Swiata", lançado pela Editora Cosaf Naify e vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura como o melhor livro de romance do ano de 2013. Quando recebi o livro pelos Correios, minha primeira compra na Amazon, confesso que achei um tanto carregado nas ilustrações. Porém, assim que avançamos na leitura, as fotos e panfletos reproduzidos situam o leitor no tempo da narrativa e as páginas de cores diferentes contribuem na condução da trama. A história não é contad...

"A Vida Real", Fernando Sabino

SABINO EM SONHO A VIDA REAL, Fernando Sabino, 2ª. ed., Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963, 209 pág. Acabo de ler "A Vida Real", do escritor mineiro, morto em 2004, Fernando Sabino. Meu exemplar, particularmente, é guardado com carinho. Adquirido em um sebo, é o livro nº. 3975 da 2ª. edição (out/1963) - a primeira teve apenas 500 exemplares e foi lançada em 1952, quatro anos após Sabino regressar ao Brasil de Nova York (dessa permanência resultou o livro "A Cidade Vazia"). "A Vida Real" é composta de cinco novelas, tendo como tema central "a emoção vivida durante o sono". Diferente do que ocorre em diversos outros de seus livros, Fernando Sabino não procura narrar situações do cotidiano, optando por abordar questões subjetivas e dramas pessoais passados pelas personagens. O estilo claro, limpo e objetivo, característico dos textos de Sabino está presente, garatindo uma leitura agradável e ágil. Vale a leitura para conhecer um outro lado do aut...

"Onde os velhos não têm vez", Cormac McCarthy

SANGUE E VIOLÊNCIA NA FRONTEIRA Cristian Luis Hruschka   McCARTHY, Cormac. Onde os velhos não têm vez , 2ª ed., Rio de Janeiro: Alfaguara, 2023, 229 páginas (Tradução: Adriana Lisboa).   Visceral! Lançado em 2005, o romance “Onde os velhos não têm vez”, de Cormac McCarthy, é violento, direto e sensacional. Falecido em junho de 2023, McCarthy é considerado um dos maiores escritores norte-americanos dos últimos tempos. Ficou conhecido por romances com alto grau de violência e economia de detalhes. O livro “Onde os velhos não têm vez”, reeditado pela Ed. Alfaguara, é prova disso. Ambientado no Texas, na divisa com o México, a trama avança com velocidade, narrando a fuga de Llwelyn Moss (veterano do Vietnã) do “carniceiro” Anton Chigurh, o qual, por sua vez, é perseguido pelo xerife Ed Tom Bell, já com certa idade e desanimado com o aumento da violência na região. Tudo começa quando Moss, durante uma caçada na região árida próxima ao México, se depara com o resul...

"Guia Literário para Machos", Caléu

LETRAS FRATURADAS Cristian Luis Hruschka MORAES, Caléu Nilson. Guia Literário para Machos , Florianópolis: Ed. UFSC, 2017, 117 pág. Catarinense da pequena cidade de Santa Cecília, Caléu nos apresenta um livro desconfortante. É que os contos que integram “Guia Literário para Machos” deixam o leitor incomodado, perplexo pela linguagem direta e vulgar, mas animado para continuar com a leitura e acompanhar a saga sexual do personagem narrador. “Guia Literário...” foi vencedor do Prêmio Silveira de Souza 2015, promovido pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, e certamente mexeu com os jurados. Já no primeiro conto (“Poeta Viado”) se verifica a agressividade do estilo de Caléu, usando e abusando de palavrões e narrativas sexuais que deixariam Christian Grey e seus 50 Tons de Cinza passarem vergonha por muito tempo. Aliás, perto das situações (posições!) descritas por Caléu, E. L. James não passa de uma ginasiana. O escritor Carlos Henrique Schroeder, resp...

"Jeito de Matar Lagartas", Antônio Carlos Viana

ACIDEZ PARA A MATURIDADE Cristian Luis Hruschka VIANA, Antônio Carlos. Jeito de Matar Lagartas, Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 2015, 168 páginas. O gênero conto está retornando ao gosto da leitura dos brasileiros. Esquecido por alguns anos, o País penou nesse campo literário, com poucos autores de qualidade. Entre eles está o sergipano Antônio Carlos Viana, autor de "Jeito de Matar Lagartas", lançado em 2015 pela Companhia das Letras. Famoso pelos seus livros anteriores, em especial "Cine Privê" (2009) e "Aberto está o Inferno" (2004), o escritor representa o que há de melhor no conto literário nacional. Com linguagem objetiva, frases bem construídas e o uso apurado das palavras, utilizadas de maneira precisa, sem carregar o texto, a leitura se torna rápida e prazerosa. Estes são, aliás, os objetivos dos contistas, que procuram reunir num texto reduzido elementos como introdução, por meio da apresentação dos personagens, tempo e lugar, desen...

"Geração do Deserto", Guido Wilmar Sassi

A SAGA DOS PELADOS Cristian Luis Hruschka GERAÇÃO DO DESERTO, Guido Wilmar Sassi, Porto Alegre: Ed. Movimento, 1982, 175 pág. Em nova incursão ao sebo (garimpando, garimpando…), encontrei uma pérola da literatura catarinense. Escrito por Guido Wilmar Sassi (1922/2003), e tendo sua primeira edição em 1964, “Geração do Deserto” se apresenta como uma das mais importantes obras de nosso cenário literário. De forma romanceada, o autor aborda na narrativa a conhecida Guerra do Contestado, evento ocorrido entre 1912 e 1916, envolvendo aproximadamente 20 mil caboclos (pelados), contra as forças constituídas do Governo Federal e Estadual (peludos). A batalha recebeu esse nome por ter sido travada na região de disputa territorial entre os Estados do Paraná e Santa Catarina, sendo que cidades como Caçador, Lages e Canoinhas (SC), ainda guardam vestígios do conflito. Com linguagem regionalista e objetiva, o autor nos apresenta a personagens como Boca Rica, Mané Rengo, Liveira, Rica...

"Einstein no Espaço-Tempo", Samuel Graydon

BREVE HISTÓRIA DE UM GÊNIO Cristian Luis Hruschka GRAYDON, Samuel. Einstein no Espaço-Tempo: a vida de um gênio em 99 partículas , Rio de Janeiro: Sextante, 2024, 304 páginas (Tradução: André Fontenelle).   “Eu quero minha paz. Quero saber como Deus criou o mundo. Não estou interessado neste ou naquele fenômeno, no espectro disto ou no elemento daquilo. Quero saber o que Ele pensa, o resto são detalhes” (Albert Einstein)   Muito já se escreveu sobre o gênio da física e dificilmente alguma biografia conseguirá esmiuçar de maneira detalhada toda a vida de Albert Einstein (1879-1955). O livro de Samuel Graydon certamente não tem essa pretensão, porém, apresenta uma viagem deliciosa sobre a jornada desse importante cientista. O livro é dividido em 99 capítulos curtos e objetivos, que não respeitam, necessariamente, uma ordem cronológica definida. Contudo, como não poderia ser diferente, começam com o nascimento e crescimento de Einstein, assim como seu difícil iní...

"Depois do Último Trem", Josué Guimarães

LITERATURA RECOMENDADA Cristian Luis Hruschka GUIMARÃES, Josué. Depois do Último Trem, 2a. ed., Porto Alegre: Ed. L & PM, 1979, 141 pág. O Estado do Rio Grande do Sul sempre apresentou ótimos escritores. Érico Veríssimo na prosa e Mário Quintana na poesia, com certeza os maiores representantes. Outros estão meio esquecidos, mas suas obras não podem ser deixadas de lado. Josué Guimarães é um deles. Nascido na cidade de São Jerônimo (RS), teve uma vida movimentada. Trabalhou em diversos jornais de âmbito nacional, sendo perseguido durante o regime militar, quando esteve na clandestinidade escrevendo por meio de pseudônimos. Falecido em 1986, deixou um grande número de obras, adultas e infantis. Seus livros de maior expressão são "Enquanto a noite não chega", reconhecido pela crítica como obra máxima, "Dona Anja", "Tambores Silenciosos" e "Camilo Mortágua". Lembrei de seu nome quando estava lendo o artigo do Alberto Mussa no suplemento ...