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"1808", Laurentino Gomes


FUGA À COLÔNIA TROPICAL


1808, Laurentino Gomes, São Paulo: Ed. Planeta, 2007, 414 pág.


Em minucioso trabalho de pesquisa, Laurentino Gomes conseguiu produzir o livro de não-ficção mais comentado de 2008. Liderando por diversas semanas a lista dos mais vendidos, 1808 conta a vinda da família real portuguesa para o Brasil, ocorrida no ano que dá título ao livro.

Com linguagem simples, procura traçar um perfil de D. João VI, sua esposa Carlota Joaquina, e demais figuras que transitavam por essa terra brasilis.

No início do século XIX, Portugal era um país decadente, atrasado e extramente religioso, sendo avesso à manifestações libertárias e de pequena população. Sua frota marítima já não chegava aos pés do que fora em tempos passados. O país não buscava a modernização de seus costumes e idéias, sentindo grandes dificuldades financeiras e demográficas. Como se percebe, estava na contramão da história, distante da revolução industrial que se iniciou na Inglaterra em 1770.

Não bastasse esse atraso com relação aos demais países europeus, tinha Napoleão em seus calcanhares, cuja invasão ao território português não tardaria. No entanto, matinha antiga e profícua ligação com a Inglaterra, inimiga dos franceses. Utilizando-se dessa amizade, a família real trocou a proteção da esquadra marinha inglesa pela abertura de seus portos intramarinos. Com isso, rumou ao Brasil fugindo das garras do imperador francês.

A saída foi rápida e atrapalhada. Não houve discurso de despedida, apenas a fixação nas ruas de um decreto explicando as razões da partida e informando a aproximação das tropas inimigas. Para D. João VI, sua ida ao Brasil pouparia um derramamento desnecessário de sangue em caso de resistência. Permaneceria no Rio de Janeiro até que a poeira baixasse e toda a situação estivesse controlada.

Esses fatos são contados com riqueza de detalhes por Laurentino Gomes, inclusive a limpeza dos cofres públicos efetuada por João VI antes da partida e o esquecimento dos livros da “Biblioteca Real”, entre eles a primeira edição de “Os Lusíadas” e antigas cópias manuscritas da Bíblia.

São mencionados ainda outras informações pitorescas e que não constam em livros que relatam a vinda da família real, tal como a determinação do Príncipe Regente para prender Humboldt por sua expedição pela Amazônia, bem como informações de outras cidades, então colônias, brasileiras, como o caso de Florianópolis, conhecida pela beleza, organização e tranqüilidade. A cidade do Rio de Janeiro, por sua vez, era suja e os ratos se proliferavam com rapidez.

Quando por aqui aportou, D. João VI deparou com uma colônia sem dinheiro circulante, predominando o escambo, o que limitava suas oportunidades comerciais, especialmente com a recente abertura de seus portos. A reduzida elite intelectual sofria a censura da corte que dificultava a circulação de livros e expressão da idéias, cujas reuniões para tais fins eram consideradas ilegais. Os escravos, aqui somando negros libertos, mulatos e mestiços, correspondiam a 2/3 da população, cujos brancos eram a minoria e tinham verdadeiro pavor de rebeliões.

O então Príncipe Regente, no entanto, optou por uma “imagem de rei benigno, que tudo provê e de todos cuida e protege”, sendo comuns os rituais do “beija-mão”, onde a população podia oscular D. João VI, fossem índios, escravos ou pessoas abastadas.

Fato interessante e que é abordado no livro, se refere a ausência de hospedagem para a Família Real e sua comitiva ao chegarem no Brasil. Não tardou para que fossem requisitadas pela nobreza diversas casas, as melhores, que eram marcadas com as letras “PR” correspondentes a “Príncipe Regente”, mas que eram interpretadas pela população como “ponha-se na rua”. No entanto, as pessoas que se curvavam e bajulavam a monarquia eram agraciadas com títulos de nobreza, proliferando-se marqueses, condes, viscondes e barões. Chegou, inclusive, a existir a chamada “lista de subscrições”, onde poderosos da colônia assinavam colocando-se à disposição da corte em troca de “rápidas e generosas vantagens.” Como se percebe, essa prática não mudou muito de lá para cá, mas hoje são distribuídas concessões de TV e rádio entre outros privilégios.

Laurentino Gomes ainda traça um perfil mais detalhado de D. João VI e Carlota Joaquina.

D. João VI, que se tornou rei somente após a morte de D. Maria, era uma pessoa depressiva, gorda, suja, que se vestia mal (repetia a mesma roupa em diversas ocasiões, ainda que rasgadas) e tinha medo de trovões. Era metódico e levava, sim, frangos amassados no bolso. Porém, estava ladeado por pessoas de respeito e competentes, as quais lhe auxiliaram em diversos momentos de sua vida, inclusive a ludibriar o temido Napoleão. Foi um rei popular, combinando “bondade, inteligência e senso prático.”

Já Carlota Joaquina era feia, muito feia. Vivia tramando contra seu marido, com quem apenas mantinha um casamento de aparências (moravam em casas separadas), sendo movida pela ambição e pelo poder. Maquiavélica, acabou fracassando em todas as suas investidas, o que a transformou em uma mulher muito infeliz. Sobre os seus relacionamentos extraconjugais, segundo o autor, existem indícios mas não provas cabais.

Com o passar do tempo Portugal deixou de ser importante para o Brasil. Tratava-se de um país atrasado se comparado aos demais países europeus, notadamente Inglaterra e França, e isso se refletiu na colônia. Segundo relatos de estrangeiros que por aqui passaram durante o período imperial, tratava-se de “uma colônia preguiçosa e desocupada, sem vocação para o trabalho, viciada por mais de três séculos de produção extrativista”, onde prevalecia o “analfabetismo, da falta de cultura e instrução”. Claro que essa realidade mudou para os dias atuais, e o brasileiro nem é tão preguiçoso assim, será?

Em meados de 1820 a população portuguesa cobra o retorno de seu rei. Em abril de 1821 D. João VI retorna para sua terra natal deixando em seu lugar D. Pedro, então com 22 anos. Não era seu desejo retornar, mas assim o fez levando consigo o tesouro real e limpando os cofres do Banco do Brasil. Um de seus maiores legados foi a “integridade territorial”, conseguindo manter coeso um território de dimensões continentais. À essa altura a metrópole não conseguia mais controlar sua colônia sendo que em 1822 foi proclamada a independência do Brasil e abolida a escravidão em 1888.

Como o leitor pode perceber, esse texto não se apresenta como uma resenha mas sim um resumo, porém a história é conhecida e não preciso esconder o final. O livro ainda aborda o panorama político, geográfico e financeiro da época (merecendo destaque a conversão dos valores para a moeda atual), sendo recheado de ilustrações, em especial gravuras e telas de Debret, pintor que fez parte da chamada “Missão Artística Francesa”. Acompanha ainda índice onomástico, indicação da numerosa bibliografia consultada por Laurentino Gomes e diversas notas explicativas ao final do livro.

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