Pular para o conteúdo principal

"Correr", Jean Echenoz

A LOCOMOTIVA HUMANA
Cristian Luis Hruschka

ECHENOZ, Jean. Correr, Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2010, 124 pág., tradução de Bernardo Ajzenberg.

Muito esperado pelos apaixonados por corrida, movimento que cresce em velocidade surpreendente no Brasil, o livro CORRER, do escritor francês Jean Echenoz, conta a vida de Emil Zatopek, maior atleta tcheco e o único da história a vencer, em uma única olimpíada (Helsinque, 1952), as provas dos cinco e dez mil metros e a maratona.

Nascido em 1922 na então Tchecoslováquia, Emil Zatopek vivenciou os horrores da II Guerra Mundial e a posterior ocupação de seu país pelos soviéticos. Alheio aos aspectos políticos passou a correr por obrigação, visto que a fábrica de sapatos em que trabalhava organizou uma corrida a pé e exigiu a participação dos trabalhadores. Não foi muito bem, mas acabou despertando seu interesse pelo esporte.

Gradativamente foi treinando e se preparando para disputas maiores, obtendo resultados cada vez mais expressivos.

Após o final da Segunda Guerra Mundial, estando a Tchecoslováquia dominada pelos soviéticos, que afastarem os alemães do território tcheco e impuseram seu regime de governo socialista, voltado para Moscou, o exército entendeu por bem ter Zatopek em seu quadro, conferindo-lhe patente de baixo escalão, lentamente superada face os resultados espetaculares do corredor pelo mundo e sua importância dentro do país.

A corrida proporcionou a Emil viajar pelo país e pela Europa, conhecendo países que adotavam outro regime de governo, chegando ele a disputar a famosa São Silvestre no Brasil, logicamente que vencendo com facilidade e impondo um novo recorde da prova.

Nesse episódio Zatopek concedeu entrevista ao jornal tcheco “Svobodne Slovo” informando que o Brasil era maravilhoso, realmente formidável, e que voltaria para a prova no ano seguinte. Todavia, seu visto foi negado tendo o governo brasileiro informando que o atleta havia prestado declarações ofensivas sobre o Brasil. Tal fato se explica em virtude do jornal tcheco, controlado pelos russos, ter desvirtuado a entrevista concedida e publicado informações que preservam o regime comunista e não incentivassem outros cidadãos a saírem da Tchecoslováquia, onde viviam controlados e censurados. Essa mesma situação já havia ocorrido na França, quando Zatopek havia vencido a “L’Humanité” e havia concedido entrevista onde informou que Paris era uma cidade onde existia muita coisa para se ver, com mulheres bonitas e vinho, havendo comércio por todos os cantos.

Possível perceber que todo seu talento como corredor sofria uma fiscalização do governo comunista, o qual não permitia sua saída do país com facilidade, sempre temendo que Emil não retornasse e pudesse servir de exemplo para a população dominada.

Contudo, tal fato não impediu Zatopek de ser conhecido como a “Locomotiva Humana”, lotando ruas e estádios por onde passava, sendo praticamente invencível em sua época com seu estilo peculiar de corrida. Sua história de superação também é fantástica e quando pensaram que ele estava velho e acabado para a corrida, surpreendia a todos vencendo os favoritos.

Casado com Dana Zatopkova, que nasceu no mesmo dia e ano que ele, também campeã olímpica, após encerrar sua carreira envolveu-se na libertação da Tchecoslováquia do regime socialista, fato que resultou na sua expulsão do Partido, do Exército e de Praga, levado para trabalhar em minas de urânio na fronteira noroeste tcheca com a Alemanha, onde permanece por seis longos anos. Posteriormente os socialistas resolvem “promovê-lo” a lixeiro em Praga, onde passa a correr pelas ruas catando o lixo, a fim de humilhá-lo. Porém, “quando ele percorre as ruas da cidade atrás do caminhão com a vassoura na mão, é logo reconhecido pela população, e todo mundo aparece nas janelas para ovacioná-lo. Depois, como seus colegas de trabalho se recusam a permitir que ele recolha diretamente o lixo, ele se limita a correr com passadas curtas atrás do caminhão, recebendo as mesmas palavras de incentivo de antes. Todas as manhãs, quando ele passa, os moradores do bairro onde sua equipe trabalha saem para a calçada pra aplaudi-lo, jogando, eles próprios, o seu lixo para dentro do caminhão” (pág. 123). Diante dessa tentativa frustrada os líderes do regime o mandam para o campo, onde acreditam que ele não seja tão conhecido, para trabalhar com terraplanagem. Depois, o colocam para cavar buracos para colocação de postes telegráficos e o nomeiam como “geólogo”. Mais dois anos se passam e ele é convocado perante um comitê e forçado a assinar uma declaração em que reconhece ter errado em apoiar os revoltosos e declara-se “muito feliz em relação à situação geral e muito satisfeito com a sua vida pessoal. Afirma que, apesar dos rumores, nunca trabalhou como lixeiro nem com terraplanagem. Que nunca foi perseguido, nem sequer degradado, e que não tem necessidade de receber sua aposentadoria como coronel reformado (...)” (pág. 124). Após assinar esse documento seu calvário termina e o famoso corredor, herói nacional, recebe um cargo no subsolo do Centro de Informações dos Esportes em Praga.

Emil Zatopek até hoje é reconhecido como herói nacional. Seus méritos ultrapassam todas as dificuldades sofridas. É detentor de quatro medalhas de ouro e uma prata olímpica e da medalha Pierre de Cobertain. Rei absoluto dos cinco e dez mil metros em sua época, quando muitos desistiam de correr ao saber que ele estava inscrito para participar da prova, pois não teriam chance alguma de vitória.

Morreu em Praga aos 78 anos, no dia 22 de novembro de 2000. Sua história é repleta de emoção e conquistas. A Locomotiva Humana sempre foi uma pessoa sorridente, aberta e tranquila. Exemplo de atleta e de vida.

__________________

CRISTIAN LUIS HRUSCHKA, responsável pelo site www.resenhas-literarias.blogspot.com.br. É autor do livro "Na Linha da Loucura", publicado em 2014 pela editora Minarete/Legere (www.facebook.com.br/nalinhadaloucura). E-mail: clhadv@hotmail.com

Comentários

Outras postagens ✓

"Depois do Último Trem", Josué Guimarães

LITERATURA RECOMENDADA Cristian Luis Hruschka GUIMARÃES, Josué. Depois do Último Trem, 2a. ed., Porto Alegre: Ed. L & PM, 1979, 141 pág. O Estado do Rio Grande do Sul sempre apresentou ótimos escritores. Érico Veríssimo na prosa e Mário Quintana na poesia, com certeza os maiores representantes. Outros estão meio esquecidos, mas suas obras não podem ser deixadas de lado. Josué Guimarães é um deles. Nascido na cidade de São Jerônimo (RS), teve uma vida movimentada. Trabalhou em diversos jornais de âmbito nacional, sendo perseguido durante o regime militar, quando esteve na clandestinidade escrevendo por meio de pseudônimos. Falecido em 1986, deixou um grande número de obras, adultas e infantis. Seus livros de maior expressão são "Enquanto a noite não chega", reconhecido pela crítica como obra máxima, "Dona Anja", "Tambores Silenciosos" e "Camilo Mortágua". Lembrei de seu nome quando estava lendo o artigo do Alberto Mussa no suplemento ...

"Onde os velhos não têm vez", Cormac McCarthy

SANGUE E VIOLÊNCIA NA FRONTEIRA Cristian Luis Hruschka   McCARTHY, Cormac. Onde os velhos não têm vez , 2ª ed., Rio de Janeiro: Alfaguara, 2023, 229 páginas (Tradução: Adriana Lisboa).   Visceral! Lançado em 2005, o romance “Onde os velhos não têm vez”, de Cormac McCarthy, é violento, direto e sensacional. Falecido em junho de 2023, McCarthy é considerado um dos maiores escritores norte-americanos dos últimos tempos. Ficou conhecido por romances com alto grau de violência e economia de detalhes. O livro “Onde os velhos não têm vez”, reeditado pela Ed. Alfaguara, é prova disso. Ambientado no Texas, na divisa com o México, a trama avança com velocidade, narrando a fuga de Llwelyn Moss (veterano do Vietnã) do “carniceiro” Anton Chigurh, o qual, por sua vez, é perseguido pelo xerife Ed Tom Bell, já com certa idade e desanimado com o aumento da violência na região. Tudo começa quando Moss, durante uma caçada na região árida próxima ao México, se depara com o resul...

"Einstein no Espaço-Tempo", Samuel Graydon

BREVE HISTÓRIA DE UM GÊNIO Cristian Luis Hruschka GRAYDON, Samuel. Einstein no Espaço-Tempo: a vida de um gênio em 99 partículas , Rio de Janeiro: Sextante, 2024, 304 páginas (Tradução: André Fontenelle).   “Eu quero minha paz. Quero saber como Deus criou o mundo. Não estou interessado neste ou naquele fenômeno, no espectro disto ou no elemento daquilo. Quero saber o que Ele pensa, o resto são detalhes” (Albert Einstein)   Muito já se escreveu sobre o gênio da física e dificilmente alguma biografia conseguirá esmiuçar de maneira detalhada toda a vida de Albert Einstein (1879-1955). O livro de Samuel Graydon certamente não tem essa pretensão, porém, apresenta uma viagem deliciosa sobre a jornada desse importante cientista. O livro é dividido em 99 capítulos curtos e objetivos, que não respeitam, necessariamente, uma ordem cronológica definida. Contudo, como não poderia ser diferente, começam com o nascimento e crescimento de Einstein, assim como seu difícil iní...

"O Homem Nu", Fernando Sabino

UM POUCO DE SABINO E SUA OBRA Cristian Luis Hruschka O HOMEM NU, Fernando Sabino, 38ª. ed., Rio de Janeiro: Ed. Record, 1998, 192 p. Conheci a obra de Fernando Sabino (1923-2004), em dezembro de 2006. Até então só tinha ouvido falar de seus livros sem ter me arriscado a ler algum deles. Bendita hora em que comprei “A Faca de dois Gumes” (Ed. Record, 2005), na praia, em uma banca de revistas. Foi paixão à primeira vista, ou melhor, à primeira leitura. O livro é maravilhoso, composto das novelas “O Bom Ladrão”, “Martini Seco” e “O Outro Gume da Faca”. Uma trilogia prodigiosa que leva o leitor a duvidar do certo e do errado, colocando-o no lugar dos personagens e ao mesmo tempo censurando suas atitudes. Li o livro em uma pegada. Dias após retornei à mesma banca de revistas para comprar “O Encontro Marcado”, livro mais importante da obra de Fernando Sabino, traduzido para diversos idiomas pelo mundo afora e que já ultrapassa a 80ª. edição aqui no Brasil. Não tinha mais jeito,...

"O Caminho do Peregrino", Laurentino Gomes e Osmar Ludovico

VISITA À TERRA SANTA Cristian Luis Hruschka GOMES, Laurentino; LUDOVICO, Osmar. O Caminho do Peregrino: seguindo os passos de Jesus na Terra Santa , 1ª ed., São Paulo: Globo, 2015, 198 páginas (Ilustrações: Cláudio Pastro).   Imagine-se em uma praia, à frente de um pequeno barco e com a rede vazia de peixes. Uma pessoa se aproxima e diz para você entrar no mar e lançar novamente a rede que muitos peixes virão e que a partir daquele momento você não deve mais pescar peixes, mas sim homens! Essa pessoa também se intitula filho de Deus, tendo nascido de uma virgem. Você largaria tudo para segui-lo? Nos dias atuais, com recursos tecnológicos à palma da mão, dificilmente você acreditaria em alguém com esse discurso, porém, há dois mil anos, Jesus Cristo se mostrou para a humanidade e cativou seguidores com sua simplicidade, amor e palavras de esperança. O mundo depois Dele nunca mais foi o mesmo. Em um livro curto, Laurentino Gomes, mais conhecido por "1808" e "1822...

"O Testamento de Maria", Colm Tóibín

EVANGELHO APÓCRIFO Cristian Luis Hruschka   TÓIBÍN, Colm. O Testamento de Maria , São Paulo: Companhia das Letras, 2013, 87 páginas (Tradução: Jorio Dauster).   “Disse-lhe, então, o anjo: Maria, não temas, porque achaste graça diante de Deus. E eis que em teu ventre conceberás e darás à luz um filho, e pôr-lhe-ás o nome de Jesus. Este será grande, e será chamado filho do Altíssimo; e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; E reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim.” (Lucas 1:30-33) O livro escrito por Colm Tóibín (Irlanda, 1955) choca os católicos mais fervorosos, sendo uma afronta às tradições bíblicas e à santidade de Maria, mãe de Jesus. Trata-se do relato da Virgem quanto aos últimos anos de Jesus Cristo e sua peregrinação para levar a palavra de Deus e salvação às pessoas. Contudo, a narrativa apresenta uma Maria bastante humana e inconformada com o caminho que seu filho tomou, questionando a forma que Ele se vestia e...

"Jorge, um Brasileiro", Oswaldo França Júnior

ROMANCE EM BATE-PAPO FRANÇA JÚNIOR, Oswaldo. Jorge, um Brasileiro, 1 ª  ed., Rio de janeiro: Ed. Bloch, 1967, 269 pág. Sempre fui avesso às listas dos mais vendidos. Desconheço se os clássicos de hoje fizeram parte de alguma relação no passado (se é que existia) que indicasse se tratar de uma obra indispensável, tampouco com qualidade literária. Por esse motivo, gosto de garimpar em sebos livros que já estão esquecidos pela nova geração mas que não podemos deixar de mencionar em virtude da qualidade de suas palavras. Um exemplo dessa boa literatura é "Jorge, um Brasileiro", do escritor mineiro Oswaldo França Júnior, que adquiri pelo simbólico valor de R$ 5,00 (cinco reais). Um absurdo, quanto mais por se tratar da primeira edição. Nascido em 21 de julho de 1936 na cidade do Serro, Estado de Minas Gerais, França Júnior foi cedo para a cidade do Rio de Janeiro (RJ) onde se tornou piloto da Força Aérea Brasileira. Expulso em 1964 por ocasião do golpe militar implantado no ...

"Perguntaram-me se Acredito em Deus", Rubem Alves

REFLEXÕES DE RELIGIOSIDADE Cristian Luis Hruschka PERGUNTARAM-ME SE ACREDITO EM DEUS, Rubem Alves, Ed. Planeta, 2007, 176 p. Psicanalista, educador e autor de diversos livros infantis e sobre religião, Rubem Alves é ainda cronista do jornal Folha de São Paulo. Em seus recentes textos destaca-se a discussão que levantou a respeito da eutanásia: “A vida só pode ser medida por batidas do coração ou ondas elétricas. Como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música, ainda que seja a de um simples sorriso. Admitamos, para efeito de argumentação, que a vida é dada por Deus e que somente Deus tem o direito de tirá-la. Qualquer intervenção mecânica ou química que tenha por objetivo fazer com que a vida dê o seu acorde final seria pecado, assassinato.” (Folha, 08.01.2008, pág. C2). Em outro artigo, no mesmo jornal, Rubem Alves destaca: “Muitos dos ‘recursos heróicos’ para manter vivo um paciente são, no meu ponto de vista, um...

"O Alienista", Machado de Assis

O ALIENISTA EM QUADRINHOS Cristian Luis Hruschka O ALIENISTA, Machado de Assis, adaptado por César Lobo (arte) e Luiz Antonio Aguiar (roteiro), São Paulo: Ática, 2008, 72 pág. (Clássicos Brasileiros em HQ). “A loucura, objeto de meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”. (Machado de Assis, “O Alienista”). O ano que passou foi considerado o “Ano de Machado de Assis”, homenagem ao escritor brasileiro por força do centenário de sua morte ocorrida em 29 de setembro de 1908. À guisa de diversas homenagens, muito se falou e comentou à respeito, inclusive no segmento das histórias em quadrinhos. Nessa senda, o trabalho realizado por César Lobo e Luiz Antonio Aguiar, este profundo conhecedor da obra do Bruxo do Cosme Velho (tendo publicado em 2008 o “Almanaque Machado de Assis” – Ed. Record), merece destaque. Em exemplar primoroso, os autores adaptaram a novela “O Alienista”, um dos melhores trabalhos...

"O Útimo Homem Branco", Mohsin Hamid

PROMETE MAS NÃO ENTREGA Cristian Luis Hruschka   HAMID, Mohsin. O Último Homem Branco , São Paulo: Companhia das Letras, 2023, 134 páginas (Tradução: José Geraldo Couto).   Lançado em 2022, o livro de Mohsin Hamid foi recebido como um sucesso de crítica. Nascido no Paquistão, o escritor já viveu na Califórnia, Nova Iorque e Londres, sendo colaborador de jornais como The New York Times e Washington Post. O livro conta a história de Anders, um homem branco que, em certa manhã, ao acordar, “descobriu que tinha adquirido uma profunda e inegável tonalidade marron”. A temática proposta é muito inteligente e gera controvérsias das mais variadas, principalmente quanto à intolerância racial. Escrito de maneira arrastada, o livro não prende o leitor e, na minha singela opinião, assim segue até o final. A ideia de abordar uma questão tão importante, com grande clamor social e por muitos tida como apavorante por colocar em xeque a “supremacia do homem branco”, que estaria ...