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"Relato de um Náufrago", Gabriel Garcia Márquez

NAUFRÁGIO NO CARIBE
Cristian Luis Hruschka

GARCIA MÁRQUEZ, Gabriel. Relato de um Náufrago, 18a. ed., Rio de Janeiro: Record, 1994, 134 pág. Tradução: Remy Gorga, filho.

Ler Garcia Márquez é sempre um prazer. De tempos em tempos precisamos pegá-lo para incluir qualidade em nossas leituras. Pena ter nos deixado em 2014, aos 84 anos de idade. Prêmio Nobel da Literatura em 1982, o escritor colombiano tem no livro "Cem Anos de Solidão" sua obra-prima, porém, "O Relato de um Náufrago" e "Crônica de uma Morte Anunciada", livros curtos, merecem destaque no conjunto de sua obra.

O que mais me impressiona em Garcia Márquez é sua capacidade de manter um ritmo constante durante todo o livro. A velocidade que imprime na narrativa deixa o leitor preso ao texto, ansioso para saber quais serão os próximos desdobramentos da trama.

Em "Relato de um Náufrago" é contado o naufrágio do destróier Caldas, da Marinha Mercante da Colômbia, que desaparece durante uma tormenta no mar do Caribe. Apenas Luís Eduardo Velasco sobrevive e ao chegar narra seu martírio à um jornal de Bogotá. Foram dez dias no mar, à deriva, sobrevivendo da carne de peixe e bebendo água do mar: "Completamente esgotado me debrucei sobre a borda e tomei vários goles de água. Agora sei que é útil ao organismo, mas então não sabia, e só recorria a ela quando a dor na garganta me desesperava. Depois de sete dias sem tomar água, a sede é uma sensação estranha; é uma dor profunda na garganta, no esterno e, principalmente, sobas clavículas, E é o desespero da asfixia. A água do mar me aliviava a dor" (pág. 90).

Sozinho em uma balsa, o náufrago fica tempo olhando para o horizonte na esperança de localizar um navio ou um avião que possa resgatá-lo. Os dias são monótonos, as noites lentas e angustiantes. Garcia Márquez, porém, não deixa a peteca cair. A captura de uma gaivota que pousou na balsa é das partes mais curiosas. Morto de fome, com o animal já abatido, Velasco não tem coragem de comê-la, ainda que morto de fome: "A primeira coisa que tratei de fazer foi depená-la. Era excessivamente leve e os ossos tão frágeis que quebravam com os dedos. Tentava arrancar-lhe as penas, mas estavam tão grudadas à pele, delicada e branca, que a carne se desprendia e se misturava às penas ensanguentadas. A substância negra e viscosa nos dedos me produziu uma sensação de repugnância. É fácil dizer que depois de cinco dias de fome se é capaz de comer qualquer coisa. Porém, por mais faminto que se esteja, a gente sente nojo de uma mistura de pernas e sangue quente, com um forte cheiro de peixe cru e a sarna" (pág. 68/69). Como não serviu de comida, pelo menos teve utilidade como isca para peixes.

Ao final - você já sabe que ele se salvou, afinal, é o relato de um náufrago - é recebido como herói, cujo heroísmo, como diz o autor, está no fato de não ter se deixado morrer. Socorrendo-me novamente do texto de Garcia Márquez, sempre objetivo, claro, fantástico,  nas palavras do próprio náufrago, "se a balsa fosse abastecida com água, biscoitos, empacotados, bússola e instrumentos de pesca, certamente estaria tão vivo como agora. Mas com uma diferença: não teria sido tratado como um herói. De maneira que o heroísmo, no meu caso, consiste exclusivamente em não ter me deixado morrer de fome e sede durante dez dias" (pág. 129).

Recomendo a todos a leitura de Garcia Márquez, cujos livros podem facilmente ser encontrados em sebos a preços módicos. Caso prefira, a nova edição da publicada pela Record está com uma capa incrível. Qualidade garantida!


__________________

CRISTIAN LUIS HRUSCHKA, responsável pelo site www.resenhas-literarias.blogspot.com.br. É autor do livro "Na Linha da Loucura", publicado em 2014 pela editora Minarete/Legere (www.facebook.com.br/nalinhadaloucura). E-mail: clhadv@hotmail.com

Comentários

  1. Oi Cristian, gostei das suas publicações, são uma mão na roda para quem se interessa por literatura e deseja ter contato com opiniões e sugestões interessantes. Este livro de Garcia Márquez eu ainda não li, mas fiquei curiosa para conhecer. Obrigada!

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  2. Olá, Mariangela. Obrigado pelo seu comentário. Abraços!

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  3. Oi, vou usar seu texto, com as devidas referências, claro, na minha prova sobre conteúdo de Leitura e Interação com o texto.
    Ótimo blog

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