Pular para o conteúdo principal

"O Peão Negro", Enéas Athanázio


OS 35 ANOS DE “O PEÃO NEGRO”


Enéas Athanázio, escritor catarinense, comemorou em março de 2008 os trinta e cinco anos da publicação de “O Peão Negro” (Editora do Escritor, 1973).

Escrito enquanto ainda conciliava a atividade literária com o exercício de Promotor de Justiça, o livro teve grande repercussão no meio, principalmente pela conotação regionalista de sua prosa, sendo o lançamento muito festejado na cidade de Canoinhas (SC). Foi nesse campo, da ficção regionalista, que a obra se destacou e elevou o autor à condição de um dos maiores escritores de nosso Estado, seguindo os passos trilhados por Tito Carvalho (1896/1965) e Guido Wilmar Sassi (1922).

O regionalismo literário, conforme se pode depreender da própria expressão, procura retratar as características de determinado lugar, os fatos pitorescos, as crenças, o tecido cultural de uma região. Trata-se de árduo trabalho literário, procurando manter vivas as expressões utilizadas pelas pessoas dos mais diversos recantos do País, notadamente das áreas rurais. Em tempos de globalização e de cultura homogeneizada, merece ainda maior destaque, sob pena de se perderem no esquecimento os hábitos e costumes de nossa gente.

Para a professora de teoria literária e literatura comparada da USP, Ligia Chiappini, o “regionalismo na literatura, como tema de estudo, constitui um desafio teórico, na medida em que defronta o estudioso com questões das mais candentes da teoria, da crítica e da história literárias, tais como os problemas do valor; da relação entre arte a sociedade; das relações da literatura com as ciências humanas; das literaturas canônicas e não-canônicas e das fronteiras movediças entre clãs. Estudar o regionalismo hoje nos leva a constatar seu caráter universal e moderno.” (Disponível em: www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/170.pdf. Acesso em: 31.mar.2008).

Na literatura brasileira destacam-se como grandes regionalistas escritores da estirpe de Guimarães Rosa, Simões Lopes Neto, José Cândido de Carvalho, Euclides da Cunha e, por que não dizer, ainda agora que a Companhia das Letras irá republicar sua obra completa, Jorge Amado.

O regionalismo de Enéas Athanázio busca retratar as idas e vindas dos habitantes dos Campos Gerais catarinenses. O escritor conhece-os como a palma da própria mão, tendo nascido em Campos Novos e atuado como advogado e promotor de justiça em diversas cidades da região. Domina, portanto, sua geografia, sua gente e suas expressões de linguagem.

Como exemplo dessa prosa rica, podemos citar trechos de dois contos de Athanázio, incluídos no livro “A Gripe da Barreira, Causos do Ermo” (Ed. Minarete, 1999):

“No Inferninho, com as portas escancaradas para a estrada, erguia-se o casarão de madeira de pinho, com seus dois andares, onde funcionava a única venda sortida da região. Nela o povo se fornecia de secos e molhados, ferramentas e utensílios. Ali bebaços enchiam a cara, sentados na beira do balcão, e às vezes até tiravam alguma diferença no facão, na garrucha ou no cacete. No geral, porém, reinavam a paz e o silêncio naquele rincão do campo verdejante.” (extraído do conto “O Prato do Vidá”).

Em outro trecho, num arremate de profundo regionalismo literário, Enéas Athanázio nos apresenta características peculiares da linguagem do povo dos Campos Gerais:

“O infeliz varou a noite na bodega, entertido no carteado e na pinga, empinando um liso atrás do outro. Tava de uruca e perdeu os cobre que tinha, coisa miúda, que graúda não chegava naquela algibeira de sojeito escramentado de serviço. O sol nascendo, pintando de encarnado o céu no encontro das coxilhas, tropicando e praguejando, mandou-se para casa. Bolso e estâmio vazios. Nem se sabia o qual mais oco, o estâmio batendo no espinhaço, ardendo que nem a vaidade do jogador derrotado. Conhecedor do sojeito desde piazote, inté parece que tô vendo.” (extraído do conto “O Bolinho de Graxa”).

O Peão Negro traz em seu bojo diversas narrativas regionalistas, caracterizadas pela forte identidade do povo campeiro. Autor de seu prefácio, Péricles Prade já vaticinava que “a política da roça, as corridas de cavalos, os crimes, os temores religiosos, as conversas típicas, o êxodo resultante de um fato inusitado, o coronelismo, a palavra empenhada, enfim a vida do interior com todas as suas gamas” iriam provocar “um raro prazer nos leitores sensíveis.” (in “Múltipla Paisagem”, Editora do Escritor, 1976, p. 157).

O regionalismo Athanaziano mantém e preserva a sonoridade de uma região, suas características físicas, naturais e geográficas. Abriga a memória de nossa gente, fazendo prevalecer as raízes de um povo ao domínio de línguas e gírias estrangeiras, de usos e hábitos que são impostos pela televisão, internet e outros meios tecnológicos. Por tais motivos devemos destacar a obra de Enéas Athanázio, pois, conforme prega o próprio escritor: “é nos momentos de globalização que as manifestações regionalistas explodem, inclusive como forma de identidade.” (“Fiapos de Vida”, vol. 2, Ed. Minarete, 2004, p. 74).

Que sua prosa regional seja perene, brindando e entusiasmando leitores e críticos.

Comentários

Outras postagens ✓

"Onde os velhos não têm vez", Cormac McCarthy

SANGUE E VIOLÊNCIA NA FRONTEIRA Cristian Luis Hruschka   McCARTHY, Cormac. Onde os velhos não têm vez , 2ª ed., Rio de Janeiro: Alfaguara, 2023, 229 páginas (Tradução: Adriana Lisboa).   Visceral! Lançado em 2005, o romance “Onde os velhos não têm vez”, de Cormac McCarthy, é violento, direto e sensacional. Falecido em junho de 2023, McCarthy é considerado um dos maiores escritores norte-americanos dos últimos tempos. Ficou conhecido por romances com alto grau de violência e economia de detalhes. O livro “Onde os velhos não têm vez”, reeditado pela Ed. Alfaguara, é prova disso. Ambientado no Texas, na divisa com o México, a trama avança com velocidade, narrando a fuga de Llwelyn Moss (veterano do Vietnã) do “carniceiro” Anton Chigurh, o qual, por sua vez, é perseguido pelo xerife Ed Tom Bell, já com certa idade e desanimado com o aumento da violência na região. Tudo começa quando Moss, durante uma caçada na região árida próxima ao México, se depara com o resul...

"Como e por que Ler os Clássicos Universais desde Cedo", Ana Maria Machado

O PRAZER DA LEITURA Cristian Luis Hruschka COMO E POR QUE LER OS CLÁSSICOS UNIVERSAIS DESDE CEDO, Ana Maria Machado, Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2002, 145 pág. Quem, quando criança, não passou pelo martírio de ler Lucíola ou O Cortiço? Respeitada a importância dos mestres José de Alencar e Aluísio de Azevedo para a literatura brasileira, de valor inestimável, ler obras de tamanha grandeza aos treze anos não é tarefa fácil. Nessa idade a gente quer brincar e se sujar. Subir em árvore e tomar banho de rio. No entanto, fadados a estudar desde cedo, com a obrigação de tirar boas notas, não resta alternativa exceto ler e fazer inúmeras fichas de leitura. Ana Maria Machado, escritora com mais de cem livros publicados, a maioria deles voltados para o público infanto-juvenil, nos ensina em "Como e por que ler os clássicos universais desde cedo" que a imposição da leitura dissemina o horror ao livro. Para ela “ninguém tem que ser obrigado a ler nada. Ler é um direito d...

“O Jogador”, Fiodor Dostoievski

O VÍCIO DO JOGO O JOGADOR, Fiodor Mikailovitch Dostoievski, Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1987 (tradução: Moacir Werneck de Castro). Nascido em 11 de novembro de 1821, na fria cidade de Moscou, Rússia, Fiodor Dostoievski é mais conhecido por suas obras “Crime e Castigo” e “Os Irmãos Karamazov”. Escritor dos mais respeitados, figura sempre ao lado de grandes mestres da literatura como Cervantes, Proust e Flaubert. Maior representante da literatura russa, a partir de 1844 passou a se dedicar com esclusividade a literatura, procurando viver da venda de seus livros e de traduções. Como a literatura tinha um público mais selecionado e escasso, não demorou para contrair dívidas, fato que foi agravado por problemas de saúde. Para complicar sua vida, foi preso e exilado na Sibéria em 1849. Como todo bom escritor, teve uma vida movimentada, sempre atento a todos os detalhes que passavam a sua frente. Nesse contexto, Dostoievski absorveu os conflitos humanos e sociais, fatores que f...

"O Útimo Homem Branco", Mohsin Hamid

PROMETE MAS NÃO ENTREGA Cristian Luis Hruschka   HAMID, Mohsin. O Último Homem Branco , São Paulo: Companhia das Letras, 2023, 134 páginas (Tradução: José Geraldo Couto).   Lançado em 2022, o livro de Mohsin Hamid foi recebido como um sucesso de crítica. Nascido no Paquistão, o escritor já viveu na Califórnia, Nova Iorque e Londres, sendo colaborador de jornais como The New York Times e Washington Post. O livro conta a história de Anders, um homem branco que, em certa manhã, ao acordar, “descobriu que tinha adquirido uma profunda e inegável tonalidade marron”. A temática proposta é muito inteligente e gera controvérsias das mais variadas, principalmente quanto à intolerância racial. Escrito de maneira arrastada, o livro não prende o leitor e, na minha singela opinião, assim segue até o final. A ideia de abordar uma questão tão importante, com grande clamor social e por muitos tida como apavorante por colocar em xeque a “supremacia do homem branco”, que estaria ...

"Mossad - Os Carrascos do Kidon", Eric Frattini

EM NOME DE ISRAEL Cristian Luis Hruschka FRATTINI, Eric. Mossad os carrascos do Kidon: a história do temível grupo de operações especiais de Israel. 1a. Ed., São Paulo: Ed. Seoman, 392 pág. Referenciado por uns e considerado por outros como sendo um grupo terrorista de Israel, o Mossad consiste no mais avançado e treinado serviço de investigação israelense. Criado em 1951, teve como proposta inicial vingar os judeus mortos durante a Segunda Guerra Mundial, aproximadamente seis milhões, e combater os inimigos de Israel em todo e qualquer lugar do planeta. O "Kidon", por sua vez, é a unidade "secreta"do Mossad, este vinculado ao Metsada, responsável pelas operações especiais de Israel. Sua norma básica de atuação é: "Não haverá matança de líderes políticos; estes devem ser tratados através dos meios políticos. Não se matará a família dos terroristas; se seus membros se puserem no caminho, não será problema nosso. Cada execução tem de ser autoriza...

"Dia de Matar Porco", Charles Kiefer

DA ROÇA AO DIREITO Cristian Luis Hruschka KIEFER, Charles. Dia de Matar Porco, Porto Alegre: Dublinense, 2014, 112 pág. Em duas oportunidades estive com o livro de Charles Kiefer nas mãos, porém, acabei optando por outro. Na última vez não tive escolha, levei. Azar o meu não tê-lo comprado já na primeira vez. Autor de outros livros, entre eles O Pêndulo do Relógio , ganhador do prêmio Jabuti em 1985, prêmio este que o Charles Kiefer ainda ganhou em outras duas oportunidades, o escritor gaúcho também ministra aulas de escrita criativa e comanda oficinas literárias. Seu livro Dia de Matar Porco  faz jus à boa fama. Escrito em primeira pessoa, narra a "autobiografia" de Ariosto Ducchese, cidadão nascido no interior do Rio Grande do Sul que, cansado da roça, resolve se aventurar na vida. Torna-se advogado de sucesso e, no conforto de sua casa, passa a contar sua vida. Recorrendo à lembranças, Ariosto apresenta a dificuldade em transpor para o papel a sua existência. P...

"Uma Mulher Transparente", Edgard Telles Ribeiro

LEITURA DIÁFANA Cristian Luis Hruschka RIBEIRO, Telles Edgard. Uma Mulher Transparente. São Paulo: Ed. Todavia, 2018, 128 páginas. Autor de mais de uma dezena de livros, Edgar Telles Ribeiro é escritor premiado e com romances traduzidos para diversos países. Diplomata, assim como o pai, nasceu em 1944 e viveu os chamados "anos de chumbo", período conturbado da história brasileira. Seu último livro, "Uma Mulher Transparente", situa a trama durante o regime militar, iniciando alguns anos antes de instaurado o golpe quando o narrador, que escreve verbetes para uma enciclopédia, testemunha um assassinato ocorrido na calçada em frente ao prédio onde trabalha. Anos depois este narrador inicia seu segundo livro onde pretende abordar a morte misteriosa, sob sua ótica, da esposa o antigo chefe (Herculano). No velório deste, encontra um colega de trabalho, dos tempos da enciclopédia, e relata seu novo projeto literário. O amigo, que era muito próximo ao chefe falec...

"Fordlândia", Greg Grandin

CAMAÇARI E FORDLÂNDIA: REFLEXOS DE UM ABANDONO Cristian Luis Hruschka GRANDIN, Greg. “Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva” , Ed. Rocco, 2010.   Em janeiro de 2022 fez um ano que a Ford Motors Company fechou suas portas em Camaçari, cidade industrial próxima a Salvador, capital da Bahia. Criada por Henry Ford (1863/1947) em 1903, a empresa automobilística empregava mais de quatro mil e quinhentos pessoas.   Segundo reportagem da Folha, assinada pelos jornalistas Leonardo Vieceli e João Pedro Pitombo [1], o fechamento da empresa causou um prejuízo milionário ao Estado da Bahia e ao município, afetando o comércio local e o setor de serviços em cerca de R$ 20 milhões por mês, valor este que advinha dos empregos diretos e indiretos da multinacional norte americana. Escolas e faculdades perderam alunos e tiveram que refinanciar dívidas tributárias. Empresas fecharam. Diversos trabalhadores deixaram a cidade para seguir com a vida e alguns tentam e...

"Mythos", Stephen Fry

VOCÊ TEM MEDO DE MITOLOGIA? Cristian Luis Hruschka   FRY, Stephen. Mythos , 2ª ed., São Paulo: Planeta, do Brasil, 2021, 368 páginas (Tradução: Helena Londres).   Quando criança ouvia muito falar em Midas, Zeus e, principalmente, Hércules, exemplo de coragem, virilidade e força. Mal sabia, no entanto, que todos esses personagens tinham sua origem na mitologia grega, o que descobri mais adiante quando passei a ler Monteiro Lobato e fiquei encantado quando ele trouxe para o Sítio do Pica Pau Amarelo seres como o Minotauro, que raptou Tia Nastácia, Medusa, os heróis Perseu e Belerofonte, Quimera, Pégaso, que era filho de Medusa com Poseidon, e o próprio Hércules com seus doze trabalhos. Os personagens mitológicos sempre estiveram ao nosso redor, seja no perfume de um Narciso, a flor, seja no trabalho incansável de Sísifo, que eternamente empurra sua pedra morro acima num esforço repetitivo e inglório. Assim como Narizinho, Pedrinho e Tia Benta, os mitos dos gregos t...

"O Homem Nu", Fernando Sabino

UM POUCO DE SABINO E SUA OBRA Cristian Luis Hruschka O HOMEM NU, Fernando Sabino, 38ª. ed., Rio de Janeiro: Ed. Record, 1998, 192 p. Conheci a obra de Fernando Sabino (1923-2004), em dezembro de 2006. Até então só tinha ouvido falar de seus livros sem ter me arriscado a ler algum deles. Bendita hora em que comprei “A Faca de dois Gumes” (Ed. Record, 2005), na praia, em uma banca de revistas. Foi paixão à primeira vista, ou melhor, à primeira leitura. O livro é maravilhoso, composto das novelas “O Bom Ladrão”, “Martini Seco” e “O Outro Gume da Faca”. Uma trilogia prodigiosa que leva o leitor a duvidar do certo e do errado, colocando-o no lugar dos personagens e ao mesmo tempo censurando suas atitudes. Li o livro em uma pegada. Dias após retornei à mesma banca de revistas para comprar “O Encontro Marcado”, livro mais importante da obra de Fernando Sabino, traduzido para diversos idiomas pelo mundo afora e que já ultrapassa a 80ª. edição aqui no Brasil. Não tinha mais jeito,...